sábado, 24 de setembro de 2011

Angelologia

No centro do salão a jaula refulgia sob o efeito das luzes do tecto, cada grossa barra de metal com quatro sombras. Ele, a um canto, de joelhos encostados ao peito e cabeça baixa, não parecia ameaça digna de tamanho aparato.

Ela entrou, os saltos dos seus sapatos ecoando no vazio. Para além disso, o único som audível era o respirar dele, pesado, como se rosnasse, um ruído forte, vibrante.

Parou perto do gradeamento, onde o cheiro dele no ar era intenso e se entranhava. Nunca sentira nada parecido: a fragrância máscula tinha um toque fresco (a mar?), e fazia com que ela se sentisse embalada, tonta.

De repente ele levantou a cabeça. Os olhos, quase pretos, eram luxúria no estado líquido, tão profundos e penetrantes que a fizeram corar. Sentia-se nua perante aquela criatura, vulnerável, como se ele lhe lesse os pensamentos e adivinhasse os gestos. Viu-lhe os cantos da boca levantar, apenas ligeiramente, como se o embaraço dela o animasse.

“O que raio és tu?”, pensou. Ele, como se ouvisse, levantou-se e esticou as asas. Magnificas…a penugem espessa, de um branco brilhante, cobria-as inteiramente. Deviam medir mais de um metro de altura, um pouco mais ainda de largura, cada uma. O corpo, moreno, era forte e definido. E de todo o lado lhe saiam tubos, cateteres, drenos…todo o tipo de fluidos lhe eram retirados do corpo para pequenos sacos pendurados.

Ela tremeu e vacilou quando uma tremenda dor de cabeça se apoderou da sua força. Num esgar de dor caiu de joelhos no chão, as mãos puxando o cabelo como se a pudesse arrancar por ali. Na sua mente passavam rapidamente imagens de um mundo de horrores, tão negro que nem os seus piores pesadelos pareciam dignos de comparação. Histórias de violações, de crimes, de sangue, guerra e mutilação. Histórias de política, de medicina; casos de violência, abuso, depravação. Um mundo de aberrações, o segredo escondido no armário da amiga de infância, o profundo azul: ali estava o álbum de horrores da humanidade, com relatos na primeira pessoa. Este era o anjo que transformava cada minuto negro (de dor, humilhação, vergonha, asco, dilaceração) num tempo difuso que tanto podia -ou não- ter acontecido. Este era o demónio que detinha o poder de lembrar as horas que não são horas.

Quando a dor abrandou a roupa dela estava agarrada ao corpo, ela banhada em suor. Ofegava violentamente como se tivesse corrido do próprio inferno, e chorava. Olhou-o nos olhos: ele, calado, devolveu o olhar. Era uma expressão doce, no entanto. Como se carregasse o pior fardo do universo com prazer. Como se o alivio da mente de quem nunca mais será o mesmo diluísse o tormento que era a sua vida. Ela pensou como podiam ser tão brancas as suas asas, vivendo num tamanho breu.

Num impulso tirou as chaves do bolso das calças e abriu a jaula. As mãos tremiam enquanto lutava por encontrar a maneira de abrir a fechadura. Quando com um estalido a porta se abriu, ele nem se mexeu- ela, no entanto, aproximou-se e passou-lhe as costas da mão pelo rosto. E foi então que ele a agarrou pelos ombros e fechou os olhos.

Ela sentiu o mundo girar, tudo à sua volta se dissolveu até ser só uma massa indistinta. O seu corpo deixou de ter peso, o seu cérebro parou de pensar; ali, num momento que não sabe se existiu de facto, tudo o que sentia era o coração bater (sístole, diástole). E de repente estava em paz, sentiu-se em harmonia com tudo, consigo mesma e com cada ser do universo. De repente todos os pecados lhe pareceram perdoáveis e todas as almas redimíveis, como se o mundo tivesse salvação e a dor fosse apenas uma fase do processo. Sentiu-se capaz de tolerar qualquer provação, de amar acima de qualquer acto. Não fosse a memória de tudo quanto vivera, quase estava capaz de se proclamar Deus.

Quando abriu os olhos sorria, o processo ainda a finalizar. Sentiu o roçar suave de penas nas costas, um equilíbrio diferente na postura, e soube que tinha asas. Mas foi só quando o olhou que se apercebeu do custo do seu gesto. Pretendera salvá-lo, conhecê-lo melhor. Pretenderá libertá-lo daquele pesadelo. E agora via que não era um fardo…que o salvara (não do seu castigo) mas da insaciável curiosidade. Que o tirara das garras da ciência…pagando com a vida dele. O anjo era agora pedra- ela tinha uma dura missão a cumprir.

Sem comentários: