segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Anónima (como todos nós)

Mãos nos bolsos, capuz na cabeça, andar apressado. Vestida de negro mal se vê na rua pouco iluminada, passando como se fugisse aos candeeiros intermitentes. Mas não disfarça o ruído dos saltos no alcatrão. Entra numa porta discreta, sem número nem lote, sem fechadura. Bate e entra, assim, sem diálogos.
Despe o casaco sem levantar os olhos. Sobe os degraus indiferente ao ranger da madeira, aos gemidos e aos gritos meio sufocados que se ouvem por entre portas fechadas e veludos cor de sangue, aos baques surdos nas paredes, ao enebriante cheiro a álcool e a fumos.
Entra numa porta como as outras e fecha-a atrás de si. Tira o vestido justo e as meias de vidro, deixa que lhe tirem o resto. Na penumbra pouco vê, quase tão pouco quanto sente enquanto mecanicamente faz o que tem a fazer. Geme como as outras. Grita como as outras. Hora após hora cumpre os acordos pré-estabelecidos e troca o orgulho pela sobrevivência.
Prisioneira de todas as necessidades do corpo. Assassina de sonhos. Caçadora de desejos. Túmulo de segredos. É apenas mais uma. Talvez seja uma a mais. (Mas não somos todos, de uma maneira ou de outra?)

Frágil(idade)


Toma-me. Não o digo, mas sinto na alma a chama que me arde nos olhos e já não penso, já não vejo, há muito que já não sei onde estou nem o que faço. Quero que me rasgues a roupa, que me pegues ao colo e me encostes contra a parede, que me arranhes, que me consumas até não restar mais fôlego, até que mal possa respirar.
Agarra-me. Avanço sem pensar, o passo mais firme que a razão, a pele mais quente que fogo. Vejo o teu peito arrepiado por entre a camisa entreaberta, desejo cada centímetro desse corpo que não é meu nem nunca será. O cabelo revolto. O sorriso sacana. O olhar penetrante. Os lábios…
Beija-me. O veneno dessa boca suga-me a consciência a cada segundo que passa, derrete-a, funde-a, este doce deleite corre-me nas veias e domina-me, só te quero ter.

(Paro antes de te tocar, naquele minúsculo intervalo que separa o sonho da realidade, aquela linha ténue que tenho medo de cruzar, partir em pedaços a razão porque vivo. Sinto uma lágrima escorrer-me pelo rosto, olho para baixo porque não te quero enfrentar, não sei se me olhas, se alguma vez me viste. Não sou capaz.)

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Mensagem

Sei que tudo está mal quando não consigo enfrentar o meu olhar no espelho. Mas tenho a certeza de que tudo vai melhorar quando sinto as unhas cravarem-se na palma da mão e as lágrimas nos olhos.
(Não vinha aqui há 2 meses. Durante todo este tempo não escrevi com medo de mim mesma. Não quis ter de enfrentar a ponta da caneta, que para quem não sabe é mordaz e assustadoramente sincera. Não quis ver o espelho de mim mesma, e ainda me sinto vacilar. Hoje li todos os meus textos que aqui estão. Sorri. Chorei. É estranho saber que momentos longínquos voltam como que por magia e levam-me ao passado, ao futuro, às memorias trancadas e a outras que julgava para sempre perdidas. Mas foi por isso que decidi voltar a escrever. Para o bem ou para o mal, está aqui um pedaço de mim que não posso desprezar, e mais tarde vou arrepender-me do que não fizer/escrever agora. Voltei. Obrigado a quem perguntou, a quem esperou.)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Dead end


Ele olhava-a descaradamente, sem medos nem pressas, esculpia na sua mente cada centímetro do corpo dela, e sorria, sorria com os olhos fixos nos dela, fundos, brilhantes, hipnotizados. Ela adorava. Sentia um formigueiro por dentro, enchia o ego com a devoção dele, jogava com aquela paixão deliberadamente porque sim, porque a excitava, lhe dava prazer, a fazia sentir especial e deixava as outras mulheres roídas de ciúme. Sorria-lhe de volta, meio de soslaio, aquele sorriso secreto que era ao mesmo tempo a mais genuína e a mais falsa face de si mesma. Ninguém sabia. Muitos desconfiavam.
Ele agarrava-a. Longe do mundo pegava-lhe na mão e levava-a a passear, puxava-a com força mas sem brusquidão para si e segurava-a no seu abraço quente, forte, irresistível. Ela deixava. Punha as mãos no cabelo dele e deixava-o fluir-lhe entre os dedos, esticava o pescoço para trás com lascívia, olhos fechados enquanto os lábios dele a levavam onde mais ninguém a levava. As mãos dele estavam ávidas, faziam circuitos nas ancas largas dela, subiam pelas costas, marcavam-lhe a cintura, agarravam-lhe o rabo. Ela gemia louca de prazer já sem noção de quem era e de onde estava, puxava o rosto dele contra o seu e beijava-o com paixão, a sua língua enrolada na dele, mordiscando-lhe os lábios carnudos, sentindo o coração dele disparar no seu peito, sentindo-o mais excitado, mais louco por ela, mas preso naquela teia.
Eram um só, fundidos num abraço ardente, um universo paralelo que surgia aos olhos de quem os visse como um holograma, visível mas inatingível, indecifrável, longínquo e distorcido.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Desabafo


Estou cansada. Estou farta dos dias e das horas, dos rostos e dos gestos, das vozes e dos olhares. Estou tão saturada do mundo quanto ele está de mim. Tenho ganas de fugir daqui, mas não há como, parece que a imundice está por todo o lado. Este lixo que se arrasta pelas ruas como bosta no esgoto, que desfila na passerelle como se estupidez fosse moda. Só mudam as moscas. Só mudam as putas das moscas.

Não me fechem os olhos...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Ilusão


Abrem-se as portas da alma com estrondo e soltam-se as vozes do espírito que urram blasfémias e impropérios. Liberta-se a revolta pelos poros e pela língua, apodera-se do corpo a insanidade da mente. As mãos rasgam a roupa como quem funde metal, a pele ferve sob o suor, a fera cresce.

Sinto no peito uma dor dilacerante e levo a mão ao tronco, um breve reflexo do desespero que no fundo ainda sinto, mas que em breve passará. Os olhos soltam faíscas mas há muito que não vejo, sinto-me cair dentro de mim, e de repente já não sou eu.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Bifacial


Estava habituada à minha máscara, de certa maneira as suas formas tinham-se fundido com as minhas e ela já era um misto de nós duas, como se já não houvesse máscara nem Rita, mas uma nova Rita, que tinha aprendido a viver com o mundo, que adoptara a sua personagem pela vida fora.
Agora a minha máscara caiu. Primeiro estalou, transpareceu o brilho nos olhos, o medo de ser real. Senti-me tremer, não ela mas eu, arrepiei-me de dentro para fora, o coração gemeu. Virei costas e fugi assustada com os meus próprios pensamentos. Segurei na máscara com as duas mãos, e senti que ela quebrava. Deixei um rasto de pedaços de mim, ou assim o julguei, enquanto corria para me esconder.
No meu esconderijo as paredes olhavam-me apreensivas. O próprio ar que consumia parecia diferente, explorava-me as entranhas e deixava o gosto doce do pecado, incitando-me a parar de lutar, a não ter medo, a viver. Deitei-me no chão de corpo esticado e alma estendida. Cada centímetro meu cedeu à mudança que me estava a dominar.
Quando me levantei mal pude acreditar. O meu novo eu era uma parte de mim há muito esquecida, que escondi quando ainda não tinha idade para entender o porquê de não a querer por perto. Lembro-me do tempo que demorei a decidir que não queria ser assim. Agora estou desconfortável. Não sei lidar comigo. Não quero responder aos pedidos do meu corpo, simplesmente não posso prestar-me aos meus pensamentos. Não, não, não. Fecho os olhos com força e agarro os cabelos com as mãos, quero sugar-me de dentro para fora.
Hoje estou confusa. Sinto-me mudar da noite para o dia, perco o controlo de mim para esta nova máscara que em tudo não encaixa, que me sufoca. Quero pedir ajuda e não consigo. Estou a ceder cada vez mais, cada vez me encontro menos.


Warning: If you find Rita out there, please take care of care of her. Please help her. Please, STOP HER!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Palavras


Já alguma vez sentiste que pronunciar alguma coisa a poderia tornar realidade? Já temeste que referir uma angústia, um medo, uma impressão, lhe pudesse dar vida, forma, cor?
Eu já. Quantas vezes não falo com medo de que os monstros que moram na minha alma me saiam pela boca, e assumam o seu lugar no mundo. Quantas vezes roo as unhas enquanto penso se digo ou não, sempre com a certeza de que sou incapaz de libertar o que me vai na alma, não vá isso acontecer.
Acredito nessa magia das palavras, branca ou negra. Quantos sentimentos não nasceram de dúvidas pronunciadas sem querer, quantas ideias não se tornaram invenções quando alguém lhes deu a força de ter um nome...
E a morte que se abate lentamente sobre alguém que te é querido, enfrenta-la? Quando as certezas que sempre te rodearam parecem estar à beira de ruir, exprimes o que te vai na alma? Não. Há palavras que são facas.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Quem de nós dois


Giro num turbilhão de problemas, dúvidas e medos, fecho os olhos e levanto a cabeça para o céu. Troveja. Preciso de uma saída.


Lembro-me do teu olhar do mais profundo azul, dessa força que me prende e me suga, do brilho meigo e do jeito doce. Tudo o resto se dissolve e ficas tu comigo, despido de amarras, de preceitos, normas e receios, dessas correntes que levam o sorriso dos meus lábios, dessas leis que matam a cor da vida. Agora estou perdida nesse beijo que me envolve e arrepia, estremeço nos teus braços e as tuas mãos seguram as minhas costas, o meu rosto, o meu pescoço. O calor da tua pele é o mesmo do meu peito, e ainda assim sinto suores frios e preciso de mais. Num momento o passado funde-se com o futuro e o tempo é só um, como que sempre tivesse sido aquele e nunca pudesse ser outro. Agora não consigo separar o meu corpo da minha mente, agora nenhum dos dois me obedece, não penso, não vejo, não ouço, não paro. Agarro-te com força e puxo-te para mim, passo a mão no teu peito e na tua barriga, cravo as unhas nas tuas costas e passo os dedos no teu cabelo. Danço ao teu ritmo, rendida a muito mais que sentimentos, embalada pelo teu cheiro. Amo-te com mais intensidade que razão. E acabo por adormecer nos teus braços, tranquila, sem saber que horas são nem o que tenho para fazer.


“Faço das lembranças um lugar seguro. Não é que eu queira reviver nenhum passado, nem revirar um sentimento revirado, mas toda vez que eu procuro uma saída acabo entrando sem querer na tua vida…”

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Voz


"Luz."
Olho-me ao espelho. Vejo a imagem distante, difusa, olho o rosto que é meu embora nem sempre pareça.
"Luz, câmara."
Acendem-se holofotes. Estende-se o mundo na sua ensaiada harmonia, desfilam os rostos e os corpos como manequins. Um brilho, aqui, um pó acolá. Escuridão e sujidade nas zonas mortas, aquelas que ninguém vê, em que ninguém passa. O meu rosto em primeiro plano, a humanidade em cenas, rolando nas minhas costas.
"Luz, câmara, acção."
Agora o espelho desapareceu. As vozes sobem e descem, passos, silêncio, cores, vazio. Agora já não vejo os holofotes, nem o palco. Não distingo as cenas. O peito vai subindo e descendo conforme respiro (porquê?). Sigo. Tenho de seguir.


(take 2: Esconde as lágrimas. Funga. Foge. Foste descoberta. Encobre. Ama. Deixa-te levar. Fala. Chora. Tem fé. Tem muita fé.)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Espiraltematicamente

Acontece que eu sou a pessoa mais solitária do mundo. A mais fria. A mais profunda e intrincada teia de ilusões e mentiras vividas a cada dia passado, esventrado, eclipsado. Acontece que eu quero mais. Que me sinto mal. Que sinto falta de cada detalhe esquecido e de cada realidade apagada, que esmorece em mim toda a alegria tão efémera, dolorosa, vazia.
Vai, corre, sua, voa.
Estou cansada, triste. Estou gelada por dentro. Será ferrugem? Sinto o coração perro. A cabeça, a alma. As mãos rasgam-me o peito de dentro para fora, não rujo nem gemo, aninho-me, calo-me, morro. Não sei se te quero. Tenho a certeza de que preciso de ti. Não sei se me suporto mais. Não posso viver noutro corpo.
Chuto. Choro. Caio. Sangro. Páro.
Ir-se-á o sol erguer de novo? Um dia? Talvez para mim…será pedir demais?
Não venhas. Sai. Deixa-me. Ama-me. Fica. Beija-me. Não me largues nunca mais…





(Não espero que ninguém entenda este desabafo. Peço desculpa pela confusão.)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Eu (também) tenho um sonho


Saí do banho, entrei no quarto e fechei a porta. Em frente ao espelho larguei a toalha no chão, e olhei-me nos olhos. O profundo castanho luzia como se estivesse em chamas.

E fui mudando. A pele escureceu, ficou mais rija, curtida, o cabelo cresceu, os olhos rasgaram. O espelho quebrou em centenas de pedacinhos, as paredes do quarto ruíram com um barulho ensurdecedor. Mas os destroços não se acumularam no chão, não. Eles subiram como que puxados pelo céu e pareciam desintegrar-se. Vi que não era só o meu quarto. Era a minha casa inteira, cimento e mobília. Eram todos os prédios e moradias da vizinhança. Eram os carros, os postes, as roupas, os computadores, os placards, as estradas. O céu vacilava entre cinzentos e breu, ribombava em trovões num padrão em espiral, os raios caíam como dardos no solo que tremia levantando poeira e rugindo como uma besta raivosa. Encolhi-me o mais que pude e tapei-me o mais que consegui com os braços. Não sei quanto tempo durou esta luta cúmplice entre o céu e a terra, mas acabou tão repentinamente quanto começou.
Talvez deva dizer o que ficou. Ficaram as árvores, as rochas, os animais, a terra. Ficou o mar. Ficaram as pessoas. A natureza cresceu numa questão de segundos por todo o lado. Nasceram vales e montes, trilhos de terra batida, grutas e florestas. Os sons mudaram. Já não se ouviam motores e buzinas, telemóveis e passos apressados. Agora pairava no ar uma melodia que me embalava e enchia por dentro. Ouvia pássaros e água corrente. Ouvia um canto, algures. Ouvia relinchar. O ar cheirava a erva molhada. A cor do céu era diferente, era mais nítida. Como se o tivessem pintado de fresco. Um azul realmente celeste, alaranjado na linha do horizonte. Andei com os pés descalços na terra húmida, afastando galhos. Conforme o corpo roçava em folhas, caules, pétalas…a sensação era diferente. As texturas. Nunca sentira as texturas. Parei perto num riacho. A água corria livre, tão limpa, tão fresca. Na outra margem um cavalo branco bebia avidamente. Deve ter sentido a minha presença, porque me olhou, e no entanto não fugiu. Atravessei a pé a zona mais baixa para me aproximar da imponente criatura. Deixei-o sentir o meu cheiro e ser ele a chegar perto.


Como Homens, imaginem o final para esta história.

Se eu pudesse...

(Um pequeno extra: imagem, como quase sempre, de Luis Royo. Um artista com A grande.)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Boca do Inferno


(Este texto foi escrito originalmente há uns bons 5 anitos, quando eu era dona de uma fantasia que hoje tento recuperar mais vezes do que aquelas que gosto de admitir. Hoje resolvi retocá-lo porque nunca o esqueci, e não resisto à tentação de o pôr aqui, adorava saber o que acham dele. Peço desculpa pelo tamanho, maior do que o habitual, sei que ocupa mais do vosso tempo. Enfim. Acreditam em lendas?)


Era uma vez um terrível feiticeiro cruel que habitava um magnífico e imponente castelo junto ao mar perto de Cascais, distante da restante população. O seu nome era Zafir, era feroz, sanguinário e invejoso, mas detentor de uma beleza invulgar e extraordinária. A fama de sua negra áurea e voraz comportamento corria pela gente, que dominada pelo medo sem hesitar lhe obedecia.
O distorcido coração do mago, contudo, implorava por companhia e ardia em doentia paixão. Num olhar apenas, uma mulher com corpo de deusa e rosto de anjo tinha-o deixado sedento de amor carnal. Não passou um dia sequer até que emitiu a ordem de captura da jovem, que sem saber desafiara as leis da estabilidade. Luzia vivia sozinha numa cabana de madeira, foi fácil arrastá-la à força para longe do seu lar.
Na presença de Zafir, Luzia vociferou. Nada sentia pelo mago e queria retomar a sua vida, mas a sua força de nada serviu. Zafir queria-a só para si. E ia afastá-la de tudo e de todos, se preciso, para fazer dela sua mulher.
A ruiva foi trancada na torre mais alta do castelo, como rezam as lendas que se deve fazer. Estava condenada à solidão até que se arrependesse de ter recusado o amor do nobre feiticeiro. Era guardada pelo mais forte cavaleiro da ordem de Zafir, Tomás, que passava dias e noites ao frio, protegendo a donzela que nem conhecia do mal exterior que não a esperava em nenhum outro lugar que não na cabeça do poderoso mago. A companhia dos dois era o mar, revolto e indomável, que ambos observavam das janelas, sedentos de partilhar um pouco daquela liberdade, invejando em silêncio o poder e a magnitude daquele mundo azul.
Zafir não esqueceu a ruiva com olhos de gato que o tinha recusado, mas o seu orgulho impediu-o de a voltar a ver, e os meses passaram. Com a falta de inimigos que ousassem enfrentá-lo, Tomás não era preciso na frente do seu pequeno exército, e o feiticeiro esqueceu que, apesar de seu discípulo, o homem era de carne e osso. E a carne falou mais alto. Tomás ouvira falar dos atributos divinos de Luzia. Sabia que todos os que lhe tinham pousado os olhos em cima haviam ficado como que hipnotizados, sem de nada mais falarem. E estava preso a poucos metros daquela que prometia ser a rainha das mulheres, sem sequer conhecer os contornos do seu rosto.
Num ímpeto, sem se atrever a questionar as consequências da ideia que o invadira, o cavaleiro pegou na chave de ouro que abria a porta por onde atirava as refeições da prisioneira e aventurou-se a subir a imensidão de escadas, só parando no topo para recuperar o fôlego.
E de resto todos sabemos o que acontece quando duas almas solitárias que partilham muito mais que um segredo e desejam a mesma coisa se cruzam. Luzia e Tomás apaixonaram-se. Aos poucos nasceu das cinzas e do desespero uma relação forte.
Mais confiantes por se terem um ao outro, os enamorados depressa começaram a pensar em fugir. O oceano era testemunha do sofrimento pelo qual haviam passado, e de alguma forma os iria proteger nesta missão impossível. De qualquer maneira, não poderiam passar a eternidade naquele lugar.
Mas o traiçoeiro Zafir sabia da história dos dois desde o inicio, e como tal estava também a par do plano de fuga. O mago sentira a traição, e roído pelo ciúme e pela raiva esperava apenas por decidir o que fazer com aqueles que o esfaqueavam pelas costas. A sua mente em nada mais pensava que em como conseguir dar-lhes o que mereciam e ensinar a todos que não se podia enganar Zafir e sair impune.
Montados no belo cavalo branco de Tomás, os apaixonados percorriam os rochedos junto ao mar o mais rápido que podiam, enquanto que o vento batia forte nas suas caras, atirando os seus cabelos para trás e dificultando a vista. Nesse momento o mago traído cria do nada uma tempestade imensa recorrendo a todas as suas forças, e o assustador fenómeno abriu os rochedos que os cavaleiros percorriam como uma terrível boca de uma fera esfomeada, engolindo-os de um só trago, acabando com a sua vida e os seus sonhos, bem como com o seu forte amor. Foram engolidos pelas águas que tanto admiravam, e desapareceram para todo o sempre.
E desde aí o buraco está aberto. Hoje o seu nome é Boca do Inferno, e não há quem o visite que não sinta arrepios ao ouvir o terrível rugido do mar embatendo nas rochas. Há também quem jure ouvir o relinchar de um cavalo assustado.


(Quanto ao mago, diz a lenda que as forças que usou para invocar tamanha tempestade consumiram todo o seu ser, e que perdeu a vida no exacto momento em que as rochas se abriram e engoliram os amados. O seu castelo ruiu engolindo tudo e todos os que lá se encontravam. Com o tempo nada restou.)

De ontem para hoje

Um dia fui consumida por um desejo grande demais para caber no meu corpo, paixão que tomou formas sumptuosas e aqueceu a alma. Um dia gelei de fora para dentro, fui minguando e definhando de espírito até que o meu coração passou a gerir sozinho a vida que restava. Noutro dia atirei-me de cabeça para um qualquer abismo, sem medir distâncias nem consequências, sorrindo para o vazio como estando certa da eternidade. Ontem fui poeta, actriz, mendiga, princesa. Ontem fui tudo sem nada ser, pouco sentindo e menos vivendo. Mas hoje tenho algo mais a dizer.
Hoje descobri que posso ser inteira e feliz. Descobri que não preciso de fingir nem de inventar, que o meu mundo de fantasia pode deixar de ser um refúgio obrigatório para passar a ser apenas palco de maravilhas. Hoje adormeci no teu abraço, só porque sim. Não era de noite. Não estávamos exaustos. Podíamos fazer qualquer outra coisa juntos, ou seguir cada um para seu lado. Mas partilhámos o tempo e o espaço como quem nada teme, deve ou tem a esconder. E, de consciência limpa, deixámos o sonho vencer. Envolta no teu cheiro e na textura da tua pele sonhei com o presente. Com o presente tranquilo que vivemos hoje, com o presente que foste na minha vida e que fez tudo valer a pena, mais colorido, mais real. Acordei, e o presente do sonho estendia-se à minha frente, melhor que tapete vermelho.
(E)s(t)ou feliz por te amar.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Enquadrada

Acordei com um grito e aquela sensação de falta de ar. Num ímpeto sentei-me, tossi, fechei os olhos com força. Senti as bochechas molhadas e reparei que me ardiam os olhos, muito, e que a respiração me saía a galope. Estivera a chorar. Tinha acordado sufocada pelas minhas próprias lágrimas, pelo soluçar descontrolado de quando perco o controlo
Teria tido vergonha, se não estivesse sozinha. Ter-me-ia levantado e fugido a correr, se não estivesse onde estava. Mas fiquei quieta, deixei as lágrimas fluírem. Respirei devagar e senti tudo à minha volta. A areia macia acariciava-me as mãos e os pés. O vento frio arrepiava-me a pele e gelava-me o rosto. Trazia consigo o aroma salgado do mar, exótico e arrebatador. O rugir das ondas enchia-me os ouvidos, acompanhado pelo coro das gaivotas, distante. Era um espectáculo digno de se ver, com vagas gigantes a engolirem rochas e areia, a rebentarem com uma raiva letal contra quem atravessasse o seu caminho. Sentia-lhe a força como se me corresse nas veias. O mar estava escuro, mais cinzento que o aço, e erguia-se imponente das profundezas do horizonte. Era um gigante maciço com raiva do mundo, todo ele espumando.
Não sei quando parei de chorar, nem quanto mais tempo fiquei ali. Deixei-me abraçar e envolver pela praia, enraizei-me àquele lugar como se lá tivesse nascido e nunca de lá devesse ter saído.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Algures

Adormeci por entre folhas amareladas de textura suave e sabor doce, flutuando no aroma delicado do papel e da tinta, vendo as personagens de um conto qualquer dançarem à minha volta até se fundirem numa só, ouvindo vozes sem donos e falas sem nexo. Sorri para uma vida que é mais minha que aquela que o meu corpo leva, mas que insiste em escapar-me por entre os dedos. Corri atrás de uma ilusão como quem tem nos pés chinelos de quarto, grandes, moles, toscos, arrastei as pernas e fui caindo.
É engraçado como o sonho é o reverso da lei da gravidade, quando em vez de me empurrar para o chão me faz voar para longe. Algures naquelas páginas encontrei uma poção que bebi tão avidamente que ainda antes de me dar conta já estava a transbordar daquele nevoeiro mágico, místico, e foi aí que encontrei quem realmente sou. É para aí que vou todos os dias. E aí ninguém me vai encontrar.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Desabafo

Aconteceu outra vez, e eu voltei a chorar. Não foi pela dor imediata, embora ela tenha estado lá para me atormentar. Foi pela raiva, pelo medo, pela impotência, pela pouca coragem que pareço ter em relação a determinados assuntos. Foi por saber que o pesadelo nunca vai acabar, que de cada vez que ele se repete estou um pouco mais isolada do mundo que me rodeia e do qual quero fazer parte. Foi por no fundo não conseguir deixar de amar uma realidade que me faz muito pior do que o quanto (é suposto) me querer bem.
Dói-me também a vergonha. A incapacidade que tenho de falar e dizer o que se passa, o não ser capaz de repetir as palavras que ouço forçadamente e me despedaçam. Dói-me negar a verdade, para os outros e para mim. Dói-me ter já engolido todo o orgulho, olhar para dentro e ver uma poça de alma, mais decadente que ontem, mais sólida que amanhã.
Às vezes desejo poder fugir daqui, para longe, e nunca mais voltar. Outras, sei que nunca vou ser capaz de abandonar nenhuma parte de mim. E odeio-me por isso.

Desculpem.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Fossas

Sinto-me transbordar de alguma coisa que não sei bem o que é. Tenho uma angústia presa no fundo da garganta e ardem-me os olhos como se precisasse de chorar um oceano. Quero aquela paz que vem de dentro, procuro aquela força que me guia nas palavras e nos actos, mas de alguma maneira sei que ela foi embora. Tenho as mãos geladas e o rosto pálido, parece que o inverno me encheu por dentro, que a chuva apagou a chama de viver. Sei que ando fria, sem paciência, esgotada, cansada. Sei que não tenho sido boa companhia, que não tenho dado o melhor de mim. Devia sentir-me responsável e querer pedir desculpa, mas não. Não quero baixar a cabeça pelo que não sinto, nem sequer sei se quero que me venham buscar, que me tirem daqui. Estou ao mesmo tempo vazia de afectos e cheia de dúvidas. Consigo ouvir os meus alicerces tremer quando lhes dá o vento, mas estou demasiado preguiçosa para me preocupar com isso. Vou-me deixar ficar aqui. Se cair, logo se vê.

Ninguém está contigo constantemente. Ninguém está sempre do teu lado. Ninguém conhece os teus segredos, ninguém sabe o gosto das tuas lágrimas, ninguém vê o outro lado do teu sorriso. Está aí alguém?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cadillac


Balançava o copo de vinho na mão como quem agita memórias. Olhava para o líquido vermelho sem o ver realmente. Até que parecendo voltar à realidade pousou o vinho na mesa e foi em passo lento até à velha jukebox, rainha daquela à parede. Descalça, pernas nuas, com nada que não uma t-shirt larga sobre a pele morena, ficou indecisa por breves instantes antes de escolher a malha. A música pairou no ar, quente e envolvente. A bela morena voltou-se para o homem de fato que a fitava do meio da sala. Parecia desconfortável, mãos nos bolsos, olhar no chão. Olhou-o de cima a baixo. Mensageiro, reles, fraco. Todo ele emanava inferioridade, e ela não gostava disso. O silêncio dela estava a deixá-lo nervoso, e quanto mais ele transpirava e punha a mão ao nó da gravata como quem se sente sufocar, mais ela prologava o momento. Quando a música deu os últimos acordes, ela falou-lhe, devagar.
“Repete lá a tua proposta, então…”
“Um milhão, limpo, metade já. Deadline, amanhã à noite.”
“Para roubar um carro…”
“E entregá-lo impecável.”
“E qual é o carro?”
As mãos dele ainda tremiam quando abriu a pasta e de lá tirou uma folha. O seu rosto era impassível. Deu o papel à morena, ainda sem a olhar.
“Oh, não é um carro…” Um sorriso de malícia pairava-lhe nos lábios. “É um Cadillac.”

CiúMEDOr


Sentes? A raiva que te cega, a dor a dilacerar-te as entranhas, a vontade de rugir, de lutar, de ganhar. Vês? O medo a espalhar-se pelo teu corpo, pela tua mente, receio de perder, de ser pior, da solidão. Notas? Como o ciúme te come a razão, se impõe e te move sem que penses nem que escolhas.
Mas, o que fazes? Libertas porque quem ama é isso que faz, e esperas ansioso que a confiança reponha a calma, que o amor fale mais alto.
...
Será que amas?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Roxanne



Sai de noite, passo firme, cabeça erguida, cabelo solto. Leva no passo o calor do tango, tem nos lábios o sabor da luxúria e no olhar o fogo da paixão. Os saltos marcam a passada segura, o vestido preto marca a silhueta fina.
Mas quem olha não sabe, quem olha não vê. Quem a deseja está cego pela lascívia, quem a inveja ignora o seu passado, presente, futuro.
Envolta em veludo vermelho, ela seduz, ela ataca, ela finge, ela mata. Por detrás daquela máscara ela chora, ela ruge, ela luta, ela morre.
Pretas são as ondas do cabelo que se abatem em peitos vividos, e enegrecem a alma de quem navega. Afiadas são as garras que se cravam nas costas de quem paga com o sopro para sentir outras marés. Doce é o gosto do pecado, da sorte, do fado, da mentira.


Roxanne, you don't have to wear that dress tonight. Roxanne, you don't have to sell your body to the night. Roxanne, you don't have to put on that red light.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Barras


Abri lentamente os olhos para a noite sem fim. Gritei como quem leva na alma a agonia de viver de luto. Estiquei o corpo sentindo o estremecer de cada músculo retesado. Queria mais, queria muito mais. Pousei o olhar ardentemente gelado nas barras de ferro que me rodeavam. Na minha mente vi-as explodir em minúsculas partículas brilhantes só porque eu assim o determinei. Ergui-me, e ao fazê-lo senti as correntes arranharem os meus tornozelos. A raiva crescia no peito, o urro forçava a garganta, as unhas cravavam-se nas palmas de tal maneira que senti o sangue, quente, pingar. Atrás das grades, os muros de vidro. Os espelhos da alma que nada mostram para além desta besta encurralada que quanto mais definha maior se torna. Se ao menos a esperança morresse a humanidade poderia voltar.