domingo, 30 de agosto de 2009

O domador de bonecas (parte 1)


Envolto numa densa nuvem negra de fumo, ele coxeou pelas sombras sem sequer olhar para trás. Quem o seguisse entenderia que não queria ser visto pelo modo como evitava as luzes e as multidões, mas a sua figura atarracada e as suas roupas andrajosas faziam com que os olhares que caíssem em si fossem de imediato arrebatados para qualquer outro lugar. Ele foi seguindo, no seu passo lento mas determinado, rumo à velha loja de brinquedos da avenida. Era tarde e esta estava fechada, e a rua, que emanava uma elegância proveniente do antigo, perdia o seu encanto de noite.
O homem parou diante da montra e levou o cigarro á boca para um longo bafo, enquanto admirava o brilho das locomotivas miniatura e as vivas cores das bonecas de pano. De repente virou-se, atravessou a casa pela lateral e, se alguém o estivesse a espiar, tê-lo-ia visto a tirar do bolso um frasco e a abrir sem dificuldades a porta das traseiras. O cheiro a ácido no ar era notório, mas ele entrou e pareceu nem dar conta de tal.
A loja era uma modesta casa de 3 andares. Na cave estava montado um pequeno escritório com mobília velha e gasta, havia uma casa de banho e pouco mais. O rés-do-chão albergava a loja em si, bem recheada de todos os encantos com os quais a pequenada delirava e sonhava todas as noites. O primeiro andar era o chamado “hospital das bonecas”. Era um sítio onde se levavam brinquedos quebrados, bonecas partidas, carrinhos aos quais faltava uma roda. Ali era possível curar quase tudo e devolver às crianças não só o boneco intacto como também o sorriso no rosto.
Mas o homem não estava interessado no encanto mágico do lugar. Com o jeito de quem sabe o que quer, não passou do espaço da loja em si. Foi até á secção que lhe interessava, abriu uma mochila suja que levava ao ombro e nela despejou todas as bonecas de porcelana que conseguiu. Não demorou nem cinco minutos. Com a mesma calma e indiferença com que entrou, fez o exacto mesmo caminho de regresso e abandonou a loja, sem o intuito de lá voltar a entrar.


***


Marta estava desfeita. Não podia simplesmente acreditar que tivesse perdido a sua boneca de porcelana. Havia uma semana que a procurava incessantemente, certa de que quem quer que a encontrasse lha devolveria sem pestanejar, certa de que ela mesma não ia ser desleixada ao ponto de se esquecer dela no parque, nem na escola. Ela tinha de estar em algum lugar, e ainda ninguém a tinha visto. Era só isso. Com cada dia menos convicção e mais tristeza no olhar, a menina de 7 anos procurava a boneca incansavelmente, a cada dia a esperança se tornava mais vã, difusa.
Nessa noite não conseguia dormir.Com a antiga fotografia de sua mãe fechada na mão, foi até à janela e olhou a noite, simplesmente o vazio. E foi então que o viu. O homem cambaleava na rua, mal sendo visível por entre as sombras das árvores não fosse a fraca iluminação e o fumo cinzento que envolvia a sua silhueta. “Estranho…” pensou. Nunca tinha visto aquela figura. No cruzamento, sem sombra que o ocultasse enquanto atravessava a estrada, a lua ficou a descoberto e iluminou o homem. Com um grito de surpresa e o bater do coração descompassado, Marta viu uma cabeça de boneca de fora da mochila do misterioso homem. Uma boneca de porcelana linda, tal como a sua. Não pensou duas vezes. Em silêncio, sem avisar o pai, saltou para dentro de um casaco e saiu sem fazer barulho. O seu instinto dizia-lhe que era o caminho daquele homem que a ia levar á sua boneca, tão especial.

sábado, 29 de agosto de 2009

Caneta de sangue

Não sei quanto tempo estive parada, a definhar por dentro, à espera que algo me despertasse, me alentasse a fúria de escrever. Quantos mais dias, meses, passaram, mais carcomida me senti, miserável e oca. Até que não aguentei mais o vazio.
Li. Li durante horas a fio, páginas atrás de páginas, todos os dias, até a vista me pesar e o sono levar a melhor. Li com a sofreguidão fugaz de quem passou demasiado tempo sem se alimentar. Senti cada alma inscrita nas folhas ser transmitida para dentro de mim, senti finalmente voltar o latejar de vida nas minhas veias. Ri alto sem motivo, enquanto a minha essência se misturava com aquelas que com o seu sangue escreveram as suas histórias. A cada frase sentia a minha força aumentar, o meu conhecimento crescer. Li com a sede vampírica de quem precisa, e depois com o prazer egoísta de quem consome.
Deitada na cama, exausta e cheia, vi o céu ficar coberto de nuvens espessas tingidas de sangue. Vi o arrastar lento e pesado das pessoas nesta cidade dos malditos, como em qualquer outra. E então decidi escrever.
Quem faz da escrita um ofício com o propósito de ser tornado público sabe que vende a alma por dinheiro que é sempre pouco, ou por vaidade que é sempre demais. Mas a tentação é grande e a carne é fraca. Entreguei-me às folhas em branco com fúria, sabendo que nelas ficaria aprisionada uma parte de mim que, embora incompleta, era real. A tinta permanente escrevi aquele que sabia ser um legado de sangue, o preço de querer imortalizar a alma ainda em vida, aos pedaços por entre papel e encadernações.


Quando acabei estava tonta, mas sentia-me plena. Alma por alma, dente por dente. A maldição de ler estava paga. Aquele punhado de folhas continha, imaculado, o meu pescoço pronto a ser mordido. Deixei-me cair. O pior havia passado.







«Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue fica a morar em Mim e Eu nele» Evangelho segundo S. João 6,51-58