segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Quero


Hoje dou por mim a pensar naquilo que realmente quero.
Quero passear pela praia, quero sentir a areia solta entre os dedos dos meus pés, quero sentir o toque arrepiante da água gelada.
Quero correr com o cão por relvados desertos e infinitos, sentir o frio do ar bater-me na cara e as mãos congelarem.
Quero chegar a casa e deixar-me cair no sofá, quero sentir o macio dos lençóis da minha cama, quero ouvir não mais que a chuva a bater forte na vidraça.
Quero tapar-me com uma manta, ligar a televisão e ver o meu filme preferido vezes sem conta, enquanto devoro uma tablete de chocolate.
Quero passar pelas pessoas e ser só mais uma, quero sorrir para alguém e ser aquela, quero simplesmente olhar e não ter de falar.
Quero vaguear por ruas sem fim questionando-me acerca da vida, sem saber quem sou, de quem sou, se és meu, sem saber para onde vou ou por onde quero ir.
Quero estar onde estás, quero ser quem sou, quero amar e viver, quero aceitar a vida como uma aventura.
Quero procurar palavras e não as conseguir encontrar, quero tentar escrever e perceber que me falta a inspiração, quero sentir o vazio da ausência não sei de quê, quero preencher esse espaço de luz.
Quero abrir o livro da minha vida e arrancar páginas amareladas, quero relê-las e sorrir, quero colar pedaço por pedaço, fazer montagens e cortar imagens, quero sublinhar momentos e riscar presenças, quero acrescentar parágrafos e tirar vírgulas.
Quero ser humana e sentir com cada pedaço de mim, quero chorar, quero rir, quero vibrar, ansiar, sofrer, quero que doa, que arda, que custe, quero sentir-me só para que me possa entregar sem limites.
Quero ouvir o som da minha própria melodia e dançar num compasso desnivelado, quero que ninguém veja mas que todos saibam, quero não ter de o dizer mas só de o sentir.
Quero deixar tudo para depois e ter o agora completamente preenchido, quero estar feliz e fechar os olhos à ignorância, quero deliberadamente virar costas ao passado e senti-lo perseguir-me como sombra.
Quero parar de ser corrente errónea e virar-me para o mundo, quero chocar de frente com a realidade e vergar sem sentidos face à sua força imensurável.
Quero saber que mesmo assim não morro, quero continuar a ser eu contra tudo e todos, quero sentar-me no meu baloiço de madeira e sentir os meus pensamentos girar, quero o sobe e desce de sensações que não é mais que eu mesma.
Quero a pulsação da lua cheia nessa noite que é só nossa, quero estar sem ti para sentir a tua falta, quero que o sol nasça e brilhe alto no céu, bem longe de mim, ao alcance de um pensamento.
Quero tudo. Quem não quer tudo pouco mais quer que nada. Mas isso apenas faz dessas pessoas desafios maiores.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Apogeu


(Para todos aqueles que amam. Para os que apreciam o que digo. Para quem se reflecte nas minhas palavras e percebe cada momento. Para os que não têm vergonha de gritar ao mundo que estão apaixonados, e que o seu coração bate mais alto. Não preciso de dizer nomes. O meu enorme obrigada.)

Sobre a tua pele molhada passo lenta mas seguramente a minha mão ansiosa, que se perde por entre o teu corpo definido e arrepiado. O teu cheiro forte e dominante invade as minhas narinas e preenche todo o meu ser. É incontrolável. Quero-te neste momento mais que a qualquer outra coisa. Deixo-me levar pelas ondas indomáveis de cada segundo que passa, sabendo que não te possuo, que nem sequer te conheço, mas é isso que me interessa, que me agrada, que me excita. Não sou tua, não és meu, não somos almas gémeas porque elas são mitos e nem existem neste momento palavras a trocar. Mas, aqui e agora, somos um e completamo-nos. Só te quero a ti e podia permanecer neste fogo por uma eternidade sem que me sentisse vã.
A tua respiração quente e ofegante no meu pescoço faz-me sentir viva e provoca-me propositadamente. Passo a mão pelo teu cabelo sedoso e sigo por tuas costas de forma sugestiva, sabendo que não eras indiferente a este toque e que estavas cada vez mais ligado a mim. Tinha os olhos fechados e nem me dei conta que o tinha feito. Estávamos presos e queríamos apenas que essa ligação se apertasse mais e mais. Quando os teus lábios encontraram os meus e pude por fim provar o gosto intenso da tua boca todo o espaço que me rodeava desvaneceu, o relógio parou, a vida caiu, rodopiando sem fim numa espiral gigantesca. Éramos só eu e tu cegos de paixão, girando num universo vazio e alucinante que nos mantinha suspensos naquele turbilhão de sensações ao mesmo tempo nítidas e desfocadas. Entre nós não havia segredos nem dúvidas, não havia espaço nem hesitação. Os únicos mistérios eram apenas a alma e o pensamento.
Atingimos o auge quando as forças já mal nos permitiam respirar. Se já nada existia á nossa volta, foi a vez de nós próprios explodirmos numa chuva brilhante de partículas infinitas e incandescentes, num vibrar forte e permanente que nos abafava e consumia, num grito mudo entoado num só tom. E depois a calma, o descer lentamente ao campo terrestre que deliberadamente abandonámos para nos podermos entregar um ao outro, sem culpa, sem pudor. Caímos inertes num sono profundo de calma e paz, largámos as mãos que unidas nos ligavam, e afastámo-nos cada um para o seu mundo, mas não sem antes trocar um último olhar que tudo disse, que tudo significou. Nessa noite dois mundos colidiram.
Quando acordámos foram de novo os teus olhos que me prenderam. Perdi-me nessa íris que ainda não tinha descoberto, que não me permitia desvendá-la. Não falei porque não havia necessidade, porque os meus lábios se cerraram e a minha garganta, solidária, secou. Sem eu querer, nasceu em mim algo que tive até medo de nomear, e apenas o teu abraço quente e seguro fez com que meu pensamento inquieto regressasse á paz bem merecida. Não me largues nunca e de mais nada precisarei.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Murmúrio de silêncio


De novo cá. Sei, e é isso que me consola, que não sou de modo algum a única que persiste neste eterno ioiô de emoções que me empurra violentamente para os mais profundos confins com a força bruta da gravidade e do mesmo modo e com a mesma rapidez me impulsiona para um tumultuoso paraíso superior.
É nesta segunda fase do ciclo que me encontro neste momento. A quantidade e frescura do ar que me invade as narinas enquanto cedo a este salto que sei ser efémero é suficiente para me libertar de todas as correntes. Fecho os olhos e deixo-me guiar. Ainda não percebi bem se gosto ou não de me apaixonar. Sou cobarde o suficiente para morrer de medo de o fazer, sou piegas para enfrentar de frente a dor que me abala quando o fogo da paixão cessa e os conflitos vencem, atiro-me de cabeça com a maior facilidade e torno-me o reflexo da própria felicidade quando o coração aperta e bate mais forte, os olhos brilham e o corpo treme.
Mais uma vez não sei o que fazer. Estou absurdamente feliz numa solidão acompanhada que não se refere ao mundo mas somente a ti, as palavras voltam a morrer na minha boca quando te tento dizer o quanto significas. E, do mesmo modo, os olhos não mentem, os actos não escondem, a terra que gira à minha volta orienta-se simplesmente por um eixo que és tu.
Estás tão perto e tão longe ao mesmo tempo que não quero estender a mão por temer simultaneamente poder tocar-te ou agarrar o vazio causado pela tua ausência. Quero-te já, agora, neste momento e para sempre, quero-te longe, distante, alheio a mim e ao meu mundo, que era pacato antes de vires.
Vem, fica, prende-me, ou então vai, por favor desaparece. Já disse vezes sem conta que me perco por mim mesma, como sou capaz de permitir que me confundas mais ainda?
Gosto, não gosto, não sei. Aliás sei. Sei que gosto, e muito, mas que não gosto mesmo nada de gostar tanto. Sinto-me tão pequena e tão confusa quando te vejo, tão fraca e vulnerável relativamente a uma massa compacta de gente feliz e confiante. Mas surges e toda essa gente desaparece, fico eu no céu e o resto do mundo onde quiser, mas não perto de mim, não num horizonte que me afecte e atinja a minha felicidade. Sinto-me humana…e perdida. Exposta e invisível, óbvia e complexa. Tudo depende dos olhos que me penetrem, das forças com as quais me depare, da atenção de quem me observe. Sou o tudo e o nada. Serei plena? Não. Sou apenas extremista, e talvez pense demais…

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

De profundis amamus


Ultimamente ando sem inspiração. Por alguma razão, que me passa totalmente ao lado, quando me sento para escrever e pego no lápis as ideias fogem. Peço, por isso, desculpa a todos os que gostam das minhas palavras.

No entanto, gostaria de fazer uma homenagem a um grande senhor, Mário Cesariny, apresentado um poema que me derrete completamente.

Até sempre, Mário!



De profundis amamus


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Desespero


As horas passam lentas por mim. Uma, duas, três… vejo os ponteiros do relógio girarem lentos numa tontura eterna e sincronizada que de dança tem apenas o compasso, cujo ritmo é igual ao do meu coração.
Paro. Nada me parece suficientemente produtivo e útil para aqueles segundos que passam e que me fogem entre os dedos sem que tenha oportunidade de os agarrar. Ler custa, as letras são pequenas demais, atropelam-se, enrolam-se, entorpecem os meus sentidos. Ouvir cansa, enche, aborrece e enerva, com todos aqueles sons misturados num grito terrivelmente desafinado que se assemelha a um conjunto de objectos cada um a gritar para seu lado, acompanhados por uma voz que parece suplicar por silêncio. Observar é pouco, conheço cada forma, cada cor, cada sombra, nada é novo, apenas o meu tédio perante tudo o que surge. Volto a olhar o relógio… mais segundos que vão e não voltam, mais minutos que passam por mim e me gritam adeus, como se se estivessem a despedir de uma desgraçada que jamais terá sucesso numa vida de oportunidades.
Deito-me e fecho os olhos, sinto que me falta alguma coisa e a garganta aperta. Abro os olhos e volto a sentar-me, não há tontura, apenas a ilusão por breves momentos que tudo é como de costume… até que a minha alma desesperada pede ansiosa algo mais.
No fundo finjo. Sei o que quero, sei o que sinto, sei de onde vem o nó horrível que me aperta a garganta. Apenas o evito, o renego, apenas me dou ao luxo de lhe virar as costas e tentar ser mais forte, apesar de saber que é totalmente impossível, que ele me apanhará sem problemas, mais tarde ou mais cedo. Posso fugir, mas não me posso esconder de mim mesma, do meu maior pesadelo. A tua voz ressoa nos meus ossos como um tilintar de sino de igreja, cerro os olhos com força e vejo os teus a mirarem-me do escuro, afasto-os com mais força ainda e deparo-me inevitavelmente com o teu sorriso. Não me persigas, desaparece. O teu mundo e o meu simplesmente não encaixam. Será que o meu alguma vez virá a encaixar onde quer que seja?
Saio porque não aguento mais esta sina. Corro veloz nas ruas que mal vejo passar por mim, grito ao vazio e tapo as orelhas porque não quero resposta. Caio, rasgo a roupa que não sei porque tenho vestida, levanto-me e continuo a correr para o nada, por nada. As lágrimas nublam a minha visão e aquecem-me, perco o fôlego e mal posso respirar, deixo-me derrubar desamparada não sei bem onde e fico lá, deixo que passem todos os meus autocarros perdidos por natureza própria, como alguém bem mas sábio que eu teve a sensatez de dizer.
Como pode o nada doer tanto, mas que vazio é este que me enche de tristeza, de dor, de mágoa, de aflição? E que coração o meu, que alma, que sina, que destino, que força é capaz de me guiar sempre na direcção errada, qual é o principio que me indica sempre o caminho que eu não devo seguir, porque é que acabo agarrada sempre aquilo que sei que perderei, aquilo que me fere, que me rasga por dentro com unhas e dentes e destrói o que lá estiver? Grito mais e mais, sem forças desespero, vem e leva-me, força, mata-me, arranca-me a essência e fica feliz, explode-me num rio de sangue espesso que corra quente na calçada imunda que os teus passos percorrem diariamente, mas por favor tira-me desta agonia…

domingo, 4 de novembro de 2007

Hoje


Hoje, aqui sentada enquanto distraidamente roo a ponta da caneta e olho para o papel pensando no que escrever, decido que o ideal é deixar-me levar ao sabor da corrente de palavras que vão surgindo lentamente numa mente quase em branco, deixar que a marca de tinta incerta decida o que fazer.
Hoje não sinto de todo. O vazio preenche-me sem que a alma me doa, simplesmente estou aqui, não estou bem, também não estou mal, respiro e tenho os olhos abertos, o coração bate e os segundos atropelam-se na sua dança metódica e bem ensaiada. Será que vivo agora?
Hoje não sou peça activa no jogo do mundo em que todos entramos, hoje sou observadora e permaneço no meu baloiço de madeira, vendo, analisando, perscrutando cada centímetro de espaço e cada gesto efectuado. Hoje assimilo informações, guardo mensagens, hoje aprendo e evoluo no silêncio e na inércia. Não estou feliz, mas também não quero estar. Estou sozinha, mas não quero companhia. Este buraco é tudo o que preciso, é tudo o que tenho e tudo o que me faz falta. Hoje, tudo o que desejo é ser indiferente, é passar ao lado, é saber que o mundo está demasiado embrenhado na sua vidinha monótona para sequer reparar na existência de mais uma máquina de sangue quente e raciocínio lento que hoje procura não ser parte dele.
Hoje, sou eu não sendo nada. Hoje, aprendo sem viver. Hoje não quero nada, mas sei que não vou por aí.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Sob a lua cheia


Assustado corri pelo bosque escuro, cuja densa vegetação me impedia de distinguir bem as formas. Eu ofegava, e desejava com todas as minhas forças que te tivesse deixado para trás, que a minha fuga apressada te tivesse despistado na noite, e que agora estivesses a salvo.
Finalmente, perdido no bosque, encontrei o meu local sagrado, o meu oásis perdido: um pequeno lago de cor azul esverdeada na qual a lua se espelhava, inteira e esplendorosa. Apesar de tudo estava bastante calmo, e entreguei-me seguro á minha sorte já que não havia como lhe escapar. Olhei a lua, cheia, bela e poderosa. Sentei-me, confiante, na pedra fria e escorregadia que era o meu abrigo de pensamentos e olhei para o relógio. Faltavam dez segundos para a meia-noite, o tempo urgia. Fechei os olhos e abstraí-me.
Não tardou a que sentisse a força animal e invasora a apoderar-se de mim. Como odiava o seu odor, a sua essência, o seu apetite carnívoro e incontrolável. Mas era tarde demais, e o Lobo estava de volta.
Senti a dor aguda de meu corpo mudar. Garras rasgavam os meus dedos e surgiam afiadas nas minhas mãos e nos meus pés, que eram agora patas fortes, firmes e peludas. A roupa rasgou-se aos poucos conforme o meu corpo se transformava e a dor atordoava-me, ao mesmo tempo que para tentar aliviá-la gritei para a lua. De repente deixei de gritar, e o meu grito transformou-se naturalmente num urro agudo e profundo, alto e vibrante. Já sentia as presas aguçadas na minha boca rasgada, o olfacto apuradíssimo, a visão penetrante e a sede de sangue. A dor da transformação mantinha-me num transe etéreo e quando senti que não aguentava mais, que estava fraco e atingira o limite, então tudo parou num instante sem deixar rasto.
Sentei-me de novo na mesma rocha onde meu corpo humano estivera, onde minhas roupas em farrapos ainda jaziam. Olhei o meu reflexo no lago, iluminado pela lua. Vi, com tristeza, meus olhos cintilantes, minhas orelhas pontiagudas, meu focinho imponente e minha pelagem farta e limpa. Todo o meu ser era mágico, majestoso e forte, e no entanto não o queria.
Ouvi, distante, um ruído de movimento no bosque. Escondi-me nas sombras para que pudesse atacar a minha presa de surpresa e saciar a minha fome, até que o aroma de fruto e flores invadiu minhas narinas e me desconcentrou por completo. Perdi a fome e o instinto predador, fui invadido pelo medo. Não podia ser verdade.
De repente surgiste, como incrédulo previra. O teu belo vestido negro estava rasgado e sujo da custosa travessia do bosque, e vi na tua linda face a expressão nítida de angústia por me teres perdido. Ajoelhaste-te junto ao lago, na mesma pedra que eu mesmo ocupara há segundos, e agarrada a um farrapo de minha camisa suada que ainda lá jazia, choraste. Cada uma de tuas lágrimas quentes e sentidas queimava a minha alma como ácido sulfúrico, enquanto me controlava, angustiado, para não me aproximar.
Foi só quando vi o brilho metálico de uma faca em tua mão e adivinhei o teu pensamento que cedi instantaneamente á vontade de me revelar e impedir-te de cometer aquela loucura.
Corri até ti e ao pores os olhos em mim não fugiste. Pelo contrário, olhaste-me nos olhos com doçura e soube de imediato que não precisava de te explicar, que já sabias de tudo, talvez até há muito tempo. Abraçaste-me com força e não resisti ao desejo de te morder e tornar-te como eu.
A dentada foi pequena, muito ao de leve, apenas o suficiente para que o meu veneno penetrasse no teu sangue. Não gritaste nem reclamaste, nem tão pouco te mexeste. De facto, pareceu-me até que não sofreste com a transformação que te alterou por completo e te transformou, sem dúvida, na mais linda loba que já vi.
Lado a lado, unidos pelo amor e pelo sangue, uivamos alto para a lua e corremos livres junto ao lago. A madrugada passou rápida e fugaz, como nunca antes fora, ou pelo menos não me parecera. Até que no firmamento surgiu o primeiro raio de sol, e, lado a lado, sentimos a maldição dissipar de nosso corpo e alma como nevoeiro. O sol surgiu, laranja, e estávamos juntos á beira de lago, de mãos dadas, nus e sós, mas felizes.
Como que demonstrando que me perdoavas a traição que fiz ao morder-te e amaldiçoar a tua vida eternamente, como a minha já estava, beijaste-me calorosa e profundamente, senti o calor do teu corpo junto do meu, tua pele macia deslizava em minhas mãos.
“Amo-te”, foi a única palavra que disseste com ternura, a mesma que, apaixonado, repeti olhando-te nos olhos e perdendo-me neles, como num imenso mar profundo e desconhecido. Depois, mais livres e soltos que nunca, tomámos banho. A vida eterna começara, e a partir daquele momento estávamos os dois juntos, sós, para sempre.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Primeiro amor


Houve, uma vez, um primeiro amor. Aquele que chegou não se sabe de onde nem quando, vindo por alguma razão desconhecida, que nasceu do nada num descampado virgem e se apropriou, regendo tudo à sua volta pelas suas regras.

Mas que regras? Quais são realmente os traços que definem o primeiro amor? Para mim, nada mais que o excesso, o exagero. De tudo. Primeiro, há demasiada curiosidade, demasiada vergonha, demasiado medo, demasiado nervosismo, quando damos por nós gostamos demasiado, vivemos demasiado, tudo à nossa volta é perfeito em excesso. Depois surgem demasiados ciúmes, demasiados suores frios, dói demais, volta-se a ter muito receio, e tem-se tanta saudade que se acha inclusivamente que se vai explodir. Se passar, as demasiadas emoções contidas dão origem a um demasiado efusivo reencontro, e do demasiado escuro buraco onde haviamos caído emergimos com uma velocidade demasiado grande para um patamar alto demais, onde tudo volta a ser demasiado bom. E o tempo vai passando, com os sentimentos e as emoções a explodirem mesmo á flôr da pele, e vamos aprendendo, até que chega ao fim, até que não dá mais, até que a situação se torna insuportável e a relação acaba. É o inferno, o buraco mais fundo, a maior queda de sempre, a dor inimaginável, as lágrimas que não param de rolar pelo nosso rosto. É o pesadelo do qual pensamos que jamais voltaremos a sair vivos, e o nosso coração está partido em tantos bocadinhos que não só pensamos que nunca mais o poderemos reconstruir, como que nunca mais gostaremos a sério de mais ninguém.

Isto é, no entanto, apenas uma semi-verdade. O coração parte, mas por mais pequenos que sejam os estilhaços há sempre alguém capaz de os colar todos de novo, com paciência, devagar, ao nosso ritmo. Não fica como novo, restará sempre a cicatriz, mas continua funcionável. Depois do primeiro amor de facto não há outro... como ele!

O tempo ajuda a que apareçam mais e diferentes amores. Alguns mais verdadeiros, outros mais seguros, uns mais loucos, outros que nos deixam e fazem sentir mais felizes, uns que duram mais, outros que quase nos passam ao lado e poucas são as lembraças que dele deixamos e talvez até algum que dure para sempre. Mas o facto é que nenhum é tão fortemente "mais" como o primeiro. Porque o primeiro era mais tudo, era mais para o bem e para o mal, foi a descoberta de nós mesmos e de um outro que nos interessa tanto ou mais que nós próprios. Foi o desbravar de um mar desconhecido e inexplorado, havia em cada segundo o gosto forte da descoberta, do novo, que nos fazia querer tudo ao máximo... e foi. Um primeiro amor nunca pode ser mais um amigo. Um primeiro amor jamais será mais um.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Morte na calçada


O som grave e mortal estoirou na noite, e foi abafado quando certeiro atingiu o seu alvo. Na calçada caiu como que em câmara lenta uma gota translúcida de seu sangue espesso, e do seu peito aberto corria agora um rio vermelho, vivo e silencioso. Lenta e pesadamente o seu corpo sem forças caiu para trás, a sua expressão alegre desaparecia a cada segundo que passava.
Os passos dela ecoavam agora pela rua, breves, assustados e apressados, procurando desesperadamente poderem anular o destino traçado pelo tempo decorrido. Sem conseguir comprimi-lo na garganta por mais tempo, ouviu-se então o som estridente do seu grito sofrido, cortando o silêncio, rasgando o breu da noite fria como uma faca aguçada. Agora, lágrimas rolavam pelo seu belo rosto, corriam de seus olhos ferozes e rápidas, quentes, como se sua alma ardente de dor transbordasse. Desesperada e inconsolavelmente, a doce morena pedia agora aos deuses que as suas lágrimas pudessem ser antídoto milagroso para o mal consumado, mas bem dentro de si sabia que nada poderia ser feito para anular o vampiro sedento de sangue que na noite atacara impiedoso, cruel e mortífero.
Em silêncio, sofrendo o recente luto de seu amor eterno, a rapariga baixou-se, e agarrando o seu amante cadáver nos braços deu-lhe um forte beijo na boca, um último beijo de despedida, simbolizando o adeus que não tivera tempo de dizer.
E eu, escondida nas sombras da cidade maldita e suja, via a cena como mera observadora, sentia o que cada um sentia, e analisava a situação. A adrenalina e precisão do assassino, a surpresa e fraqueza da vítima, a dor e sofrimento de sua amada... tudo aquilo alimentava o meu espírito, dava-me forças e fazia-me vibrar. Por mais que tentasses que a consciência do assassino pesasse, por mais que quisesses remediar a situação, tu, ó Deus do Bem, eras impotente face a mim. O assassino sentiu a prazer e a força de ter a vida de outro nas mãos e poder acabar com ela, e a morena apaixonada sabia agora que por muito que isso lhe custe, o mal acaba por ganhar. Não tens como vencer esta luta.
Contente, sorri. Enquanto o mal reinasse na terra o reino das bestas estava assegurado. Pus as mãos nos bolsos e assobiando desci a avenida. Tinha mais trabalhos a acabar.

sábado, 6 de outubro de 2007

Força


De rastos, cambaleando desamparada por entre os escombros de uma sociedade cadavérica, rastejo inconscientemente para lado nenhum, deixando perdida no chão negro e sujo uma linha rubra de sangue que escorre, incessantemente, de meu peito aberto.
Cá dentro, o ritmo cardíaco desta máquina anestesiada é cada vez mais fraco, o som seco e vibrante do seu bater é cada vez mais baixo. No entanto o meu espírito, assustado, angustiado, mas corajoso, luta desesperadamente pela sua liberdade, grita silencioso libertando a raiva, incandesce num fulgor alimentado por uma ténue esperança de voltar a viver.
No princípio atacou a escuridão, negra como breu, assustadora, mórbida, tenebrosa e fria. A sensação foi instantânea e derrubadora, uma solidão total, uma falta de tudo e de todos. Lágrimas subiram aos meus olhos, quentes e grossas, e lentamente escorreram pelo meu rosto, deixando para trás as cristalinas marcas da sua passagem. Ao senti-las em meus lábios o seu gosto salgado despertou os meus sentidos, e decidida a combater qualquer fúria ergui-me de novo, e gritei com força a minha vontade de voar mais alto.
Mas a simples reacção não chegou. Meus olhos cansados não se adaptaram ao preto baço que me rodeava. E depois o silêncio, pesado, penetrante, vigilante. As vozes dos outros, que um dia ouvi e me fizeram sorrir, pensar, agir, viver, calavam-se agora uma por uma, num silêncio eterno. Se o primeiro calar me aliviou, aos poucos morriam também os que me faziam falta, as vozes da minha alma. Por fim fiquei sozinha, fraca e desamparada. A luta contra as trevas gastara as minhas forças, e cada vez mais rebaixada sentia-me ceder á loucura, lenta mas certamente, como um massacre, uma tortura horripilante e arrasadora. Já não tinha o que chorar, nem porque chorar. Em mim já só eu existia, eu em alma, aprisionada num corpo destinado ao bolor da terra, presa a um destino fatal.
Aguda e violenta, surgiu num arranque a dor em meu peito. Ao pôr-lhe a mão apercebi-me sem surpresas de que estava nua, e que em meu corpo desprotegido e arrepiado habitavam agora feridas, queimaduras, cicatrizes, marcas de tempo, de dor, de morte e de pavor, marcas que não via mas sentia. O sangue que corria em minhas veias fugia agora por inúmeras ranhuras. Ele próprio, envenenado, alimentava a terra com sua acidez, e deixava manchas invisíveis na escuridão que rodeava.
Caí. Já não agia, nem pensava. O próprio rastejar era apenas a expressão da pantera presa em mim, que se recusava a padecer agarrada á realidade.
E foi então que surgiu, ao longe, a luz. Um ponto ínfimo, quase nulo, mas existente. Fechei os olhos e mesmo assim via-o. Percebi que não era vida. O que quer que fosse, sonho, mito, ou morte, era a saída pela qual minha alma chamou no silêncio, era a magia que evoquei da gruta mais profunda do centro do meu ser.
Calma, sorri. Sabia que estava tudo bem agora. Tu vinhas aí, o que quer que fosses, e eu esperaria por ti. Aliviada, adormeci, senti ainda o cheiro imundo e pérfido a morte quando a minha cabeça bateu seca no chão.
“Vim-te buscar.” A tua voz doce e transparente ecoou como música nos meus ouvidos. Nas tuas asas mágicas de cristal levaste-me para onde o céu não tem nome. O que aconteceu? Não sei. Desde esse segundo não mais acordei.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Dor de viver


A porta rangeu, leve, baixo, fria… como um murmúrio quase inaudível aos ouvidos desatentos do comum humano, como um grito horripilante de uma besta esfomeada para quem só desejava que ela se mantivesse fechada.
Tentando disfarçar o tremor não de frio, ou talvez um pouco, mas mais de medo, cobri-me com os lençóis e cerrei os olhos e os dentes. Ouvia os seus passos lentos, calmos, planeados, sem pressa de chegar ao destino porque ele não podia fugir, passos decididos e vitoriosos, passos desumanos e insensíveis. O chão parecia gemer comigo, por simpatia ou talvez por pena, e já não havia como disfarçar o meu desespero. Também de nada valia, simplesmente tinha de aceitar a minha condição e o meu fado.
“Shhht…” disseste ao meu ouvido, apenas alto o suficiente para que as lágrimas se soltassem de meus olhos. Enrolei-me e afastei-me, procurei sem resultados fugir ao toque húmido de tua mão, que buscava desejosa o meu corpo nú. “Sai!” gritei, talvez mais alto que o necessário, gritei para que o mundo me ouvisse e para que todo ele se desintegrasse, para que ficasse só eu e o meu canto escuro, só eu e o meu choro, só eu e a minha dor. Não saíste, e não tive como afastar-te. Não te quis, e não tive como negar-te.

Insónia


É noite. Abro a janela e a brisa invade os meus sentidos, a lufada de ar fresco atordoa-me ao mesmo tempo que o inspirar me desperta. Irónico. Como pode o inspirar me despertar, se a razão de estar à janela é ter insónias?

Tentei dormir, é facto que ninguém para além do meu relógio de cuco o pode confirmar, mas também a ele ninguém pergunta. Não sei porquê, é boa companhia, bom ouvinte e óptimo companheiro, sabe da minha vida e narra-a como páginas soltas de jornais velhos, sujos e amarrotados perdidos a um canto qualquer. Mas cala-se, porque ninguém o questiona, as pessoas preferem imaginar. As voltas que a vida dá são mais violentas que as da minha máquina de lavar (e ela já é tão velha que isso se torna complicado.).

Retomando, estava deitada, de costas no colchão duro, de olhos bem abertos fitando o tecto onde sombras indistintas se reflectiam. O silêncio era perturbador… aquele silêncio demasiado estranho. As folhas das árvores estavam quietas, os gatos não miavam alto nos telhados, os cães simplesmente tinham decidido entrar de greve ao seu ladrar grave, nenhum vizinho ouvia as noticias alto de mais nem nenhum casal resolvia brindar-me com a fantástica narrativa, asneiras incluídas, dos seus conflitos domésticos. Talvez por serem quatro da manhã. Não, há cães acordados às quatro da manhã. Contei carneiros, mas não deu. Eles já eram centenas, já me fugiam das cercas, a minha bola de sonho era uma massa branca felpuda e já nenhum pastor aguentava. Rebentei-a e decidi levantar-me.

Agora cá estou. Afinal há brisa. Som não, parece que o mundo fez voto de silêncio por hoje. Luzes também não há… definitivamente não me consigo entreter com nada. Logo, meu amigo imaginário, importas-te de aparecer???