quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Lisboémia, te venero


Porque não me contento em ter o que vejo, quero aquilo cujo acesso seja restrito. Quero uma obsessão que puxe por mim, que me obrigue a lutar, que me prenda, que me amarre, que me leve à loucura incomensurável e me faça desesperar.
Amo o gosto doce e breve do momento que foge mas hipnotiza, venero o gesto que procuro durante horas e só surge quando a minha força vacila, jogo com o envolvente monopólio das sombras dançantes, com o toque macio do veludo morno, vagueio errante por entre brumas que escondem corpos amorfos, deixo-me envolver pelo aroma inigualável de essência indecifrável e mergulho de cabeça em labirintos cuja planta se assemelha à minha Lisboa.
Diz que são todas iguais, as cidades. Não há alma como a dela, não há fado como o seu, as pedras da calçada daqueles trilhos que murmuram, olhos no Tejo que corre lento e narra para quem o quer ouvir; o meu sangue corre no toque de cada guitarra vibrante, no travo de cada gole de tinto, escorre para fora de uma clepsidra que já transborda… Esta Lisboa que dorme enquanto os seus eléctricos passam, vazios de quem os entenda, cheios de quem os empate… Lisboa não é do mundo, porque o mundo jamais a perceberá, mas não há dúvida de que o mundo é seu, porque só o suspiro da sua saudade move gerações, porque ela vence o tempo.
A minha voz é a do fado, a minha altura a do castelo, e se me queres entender não procures explicar-me… devolve-me a doçura dos colos pálidos a descoberto, traz-me de novo o cabelo revolto que, solto, tapa um pescoço que implora sentir o teu beijo, o teu respirar… A boca cala segredos que chocariam o mundo, mas que importa…
E com isto perdi na meada o fio que procurei seguir… também, o que interessa isso, quem me lê sabe que estas páginas soltas não pedem numeração nem têm ordem de leitura… Diz que amanhã reina Valentim… não creio. Mas se falamos de amor, a palavra sacra que desliza nas minhas mãos por entre letras que a dissimulam mas estremece na minha boca só de pensar no quão ousado seria pronunciá-la em vão, se falamos de amor, então que venha um Casanova, um Cagliostro. Que reine então a supra alquimia, o charme irresistível do desejo avassalador; há muito Romeu no mundo, e dessa história já eu conheço o fim.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ermo meu


Passam correntes fortes e avassaladoras, marés turbulentas e incontroláveis, ventos frios e violentos e tempestades de luz, mas para me tirar desta luta tem de vir algo bem maior, venha, se ousar, a morte ela mesma, com todo o seu esplendor glorioso (ou excesso de confiança) de quem não conhece limites, ela que me olhe bem dentro dos olhos e veremos então quem vence…até lá subirei certamente aos céus, e há a possibilidade de que volte a cair no mais profundo abismo, mas serei eu quem manda, serei eu a cerrar as pálpebras e concentrar-me na minha força até ver a luz… Até lá reino eu!
Bate a carvão, este que jaz em meu peito quente, fumega, aquece, arde…combustível fóssil, podem muitos dizer. Pois é isso mesmo, é combustível, é fonte de energia, é força, é potência, é motor! Se é fóssil? Também o é, sim, com orgulho. Já não se fazem destes. Este que pulsa cá dentro sem pedir autorização nem dar justificações é real no presente e imagem viva do passado, é pedra dura que se deixa furar por água mole se ela souber onde bater, é lenda, é mito…é mistério explicável nas profundezas de si mesmo. É único, e é meu.
Ama-me, mas não peças o que respira por sístoles e diástoles, não exijas para ti o que jamais te poderá pertencer. Não terás a chave da chama da minha alma, porque nem saberias onde a procurar, e eu jamais a cederia. Faz-me amar-te, e terás o meu pensamento. Conquista-me, hipnotiza-me, enlouquece-me, dar-te-ei acesso aos recantos mais remotos da minha mente, se souberes interpretar os enigmas deste labirinto épico. Mas nunca, jamais, sequer ouses pensar em apoderar-te do meu coração, pois é certo que se o fizeres me matarás...se antes eu não o fizer a ti.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Prisioneira em mim


Às vezes pergunto-me porque é que a minha cabeça parece um novelo tão emaranhado em si mesmo e repleto de nós que me impede de ver a vida com clareza e objectividade, que me sujeita a toda a hora a um bombardeamento incansável de ideias e pensamentos que não pedi e que tanto me perturbam, que me atira sem dó nem piedade para um abismo que tem um novo fundo de cada vez que nele caio, que me consome lentamente de dentro para fora e que me faz perder a fé em tudo.
Já não sei quem sou, o que quero, pelo que luto. Já nem sequer sei se vale a pena lutar. Esta Terra que dizem ter gente a mais assemelha-se a um planeta fantasma no qual me vejo sozinha, densa, complexa, triste, rodeada no entanto de todo o tipo de bonecos animados que parecem viver, de pálidos espectros do que seria um povo, de todo e qualquer apetrecho mecânico, inventado e inútil, que cobre a pureza do natural e o transforma num labirinto metálico ensurdecedor. Há à minha volta um universo criado com base nos caprichos de mentes anónimas que cobre a realidade que nunca verei. Não sei de que cor é a terra por baixo na casa onde vivo, não sei qual a textura do solo sob a cama onde durmo, não sei que cor tinha o céu antes de tanta substância se ter acumulado no ar… no fundo só tenho acesso ao monopólio criado por antepassados impossíveis de imaginar, a camadas e camadas de uma evolução que não sei até que ponto pode ser considerada positiva.
Algo no meu ser é incompatível com estas amarras que me prendem, o meu éter, cego, urra de dor e raiva por estar preso a este corpo, porque este, com todas as suas limitações inatas impostas por uma sociedade fantoche, é uma cápsula corrosiva para a luz que teima em soltar-se e ser livre. Filosofia ingrata, esta; como dói pensar, como é dilacerante este raio que me fulmina de cada vez que dou asas ao meu espírito, como sou brutalmente esmagada por essa águia de garras afiadas que me toma como potencial inimigo antes de ouvir o que tenho a dizer. A racionalidade é o obstáculo que se prostrou no meu caminho e teima em não sair de lá.
A minha essência é grande demais, não cabe na forma humana que me foi dada sem ao mesmo tempo conseguir libertar-se dela. A luta travada em mim é feia e mata-me pouco a pouco, não há como fugir, não estou apta a negá-la, simplesmente toda eu sou contradições e controvérsias, toda eu sou feita para viver num mundo que não existe, o meu molde não encaixa num planeta que é hoje uma gigante implantação de silicone, sem que ninguém dê conta. Sou prisioneira em mim, e, se ter de viver adoptando uma máscara para cada situação já não era castigo suficiente, vem de dentro de mim a força que me impele cada vez com mais intensidade a explodir num milhão de estrelas e ser, de uma vez, o que me diz o instinto.
A minha cabeça lateja de tanto pensamento sobreposto, as veias dilatam, o cérebro entrou em efervescência, a visão, turva, pede a escuridão externa e interna, uma paz final, talvez merecida. O meu coração bate num compasso irregular, indeciso entre o pêndulo constante, a onda veloz ou a pluma sem densidade. Ambos me pedem tréguas, ambos me exigem uma força e coragem que não sei onde procurar, já nenhum aguenta esta prisão que assume sorrisos e lágrimas, amigos que nunca foram e rotinas de morgue.
Choro numa tentativa de alívio, alio o isolamento físico ao psíquico que sempre vivi e procuro acalmar…mas não dá. A tensão cá dentro cresce e ameaça rebentar em meu peito. Quem dera não me ter entregue a esta humanidade que é cada centímetro de mim, quem dera nunca ter amado e não estar agora nesta posição que não me deixa desistir, não por mim, mas pelos que de mim precisam…pois agora não haveria amarra que contivesse o meu espírito inquieto. Alguém se enganou quando deu vida à minha essência neste contexto, eu enganei-me quando ousei criar laços de amor… terei força para criar um mundo novo?

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Coração de aço


Já não há quem sorria na rua. Parece incrível, mas de facto o universo cinzento maquinal que nos rodeia, com o seu urro de besta ensurdecedor reproduzido nos mais diversos objectos e o seu semblante frio de ferro duro e aço inoxidável, conseguiu consumir a alma da gente. Já não há risos espontâneos, olhares expressivos e gestos amáveis. Agora há relógios, fumo e alcatrão, há botões e massas compactas num transe nebuloso. A humanidade morreu.
Já não sei o que é feito do verde, o som do mar é remoto, o céu que me cobre a noite perdeu há muito as estrelas e tenho na lista telefónica mais números que amigos. Já não é outra mão que agarra a minha, é provavelmente uma mala com objectos pessoais, mesmo que eles nada signifiquem, ou um qualquer prolongamento mecânico da mesma (sendo este um telemóvel, um teclado de computador, um leitor de mp3 ou uma batedeira). Encontro mais frequentemente os meus lábios em busca de um frio e baço copo de água ou qualquer outro elemento líquido que seque minha boca do que procurando relembrar o calor do toque provocado pelos teus.
Tenho nojo desde tufão tecnológico alimentado já não por electricidade ou baterias, mas por corações que batem sempre ao mesmo compasso, por almas desertas de sonhos e desejos, por corpos cientificamente vivos mas mortos para a vida.
Procuro conforto na tinta espessa que escorre da pena quando a seguro, quente, entre os dedos, passo a mão pela textura irregular da folha de papel e o seu cheiro característico faz brotar lágrimas em meus olhos. Afinal ainda há cá dentro o inexplicável, mais que não seja a saudade e a memória. Afinal, mesmo que fraca, ainda desejo veementemente resistir e lutar. Não quero mais explicações metodológicas, estou farta de ver a vida representada em números, não quero saber dos átomos que constituem as moléculas do ar que respiro. Será que ninguém percebe que a beleza da vida está no inexplicável, na carícia do acaso, no doce toque do inesperado que causa arrepio?
Agora, pensado bem, talvez faça alguma coisa. Vou correr para a janela estreita, abri-la de par em par e gritar a plenos pulmões “Há aí humanidade?”. Mesmo antes de o fazer já ouço o eco da minha voz…haverá alguém na rua?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mar eterno


A brisa moldava-me o cabelo e invadia-me a alma enquanto calmamente caminhava pela areia seca. Descalça, conseguia sentir a textura fria dos seus finos grãos entre os dedos, marcando a minha breve passagem.
E então a mudança. A areia era agora molhada, mais dura e ainda mais fria. Sentia a humidade ao pôr o pé no chão, mas não hesitava, não tinha porque o fazer. À minha frente, o ruído do mar era ensurdecedor, aquele estrondoso e fascinante espectáculo prendia-me, estava de braço dado com as ondas, que, poderosas, rugiam e estalavam. A água, gelada, molhada, congelava-me os pés e os tornozelos, podia sentir a espuma branca dissolver-se na minha pele.
Como uma só alma, eu vivia e era a onda. Desinibida, abri a boca e rugi violentamente, libertei toda a fúria, corri desalmadamente e por fim morri na areia, dissolvendo-me e trespassando os seus finos grãos até finalmente desaparecer. Mas o meu impulso gerou outras ondas, tão fortes como eu, e assim de facto nunca morro, nunca acabo, nunca termino, apenas renasço, a mesma alma noutra matéria, o mesmo espírito indomável a admitir uma nova forma, a mesma frescura e sabedoria a percorrer o mundo inteiro aberta ao desconhecido, embalada pelo som harmónico do relógio da vida. Por vezes sorrio, amanso, relaxo, brilho e deixo que me encontrem, que me testem, que me usem. Outras expludo, torno-me uma fera feroz e ameaçadora, protejo-me fechando-me em mim mesma e semeio o pânico. Mas a minha essência, o meu ser, o meu coração, esse abriga-se na escuridão das profundezas desconhecidas e inexploradas, às quais nenhum Homem jamais chegará.
O brilho nos meus olhos é o mesmo que o da tua superfície, as ondas do meu cabelo são os raios de sol que te ilumina, e os meus lábios o túmulo sagrado dos teus segredos mortíferos e inatingíveis.
Amo-te, respeito-te, sinto-te, compreendo-te, perco-te e somos um. Neste momento, sei qual é o meu lugar, sei onde pertenço, sei porque me moldo e sei porque sou inesperada. Sou água. Sou corrente, onda, mar, túnel, sou gota, partícula, molécula, sou toda, completa, inteira, sou enigmática e mortífera, sou paixão e ódio. Sou mar com todas as forças que o meu corpo tem. Sou água!
Abri os olhos. Estava suada, ansiosa, ofegante. Olhei-te, admirei-te, senti-te. Despi-me. Rasguei de um puxão o vestido de linho branco, solto e leve que me cobria e, distante, atirei-o para longe. Sem medo corri para o mar, solta e deliberadamente, mergulhei espontânea em ti só porque sim, só mesmo porque te queria integrar, sentir teu esplendor. A temperatura gélida arrepiou-me o espírito mas deu-me vida e movimento, abri os olhos e acelerei mais e mais, desci mais fundo e fui mais longe ainda. Senti os meus pulmões lutarem desesperados por ar ao mesmo tempo que toda eu o renegava, sentia-os explodir de tensão no peito, mas não queria saber. Quando senti que era o fim, que ia desfalecer e encontrar a escuridão, meu pescoço rasgou-se de ambos os lados, como cortes feitos por garras afiadas, e de súbito estava aliviada e podia de novo respirar. Olhei-me, e entre meus dedos formaram-se membranas finas e translúcidas, o meu corpo assumira um tom azulado, os meus cabelos dançavam alegremente ao ritmo da corrente; os meus olhos já não ardiam, já não desfocavam, pelo contrário, a minha visão era agora mais límpida e precisa.
Estava livre, finalmente; solta, finalmente; viva, finalmente. Cheguei ao fundo e rocei com força na areia e nas algas verdes só para as poder sentir, e seu toque parecia seda macia e agradável. De um impulso subi o mais rápido que pude, e em instantes meu corpo harmonioso eclodiu da superfície e dei uma roda perfeita no ar, rodeada de uma chuva de grossas gotas cristalinas que admitiam efeitos de cores brilhantes com o reflexo do sol no céu limpo.
Quando de novo cai na água, vibrei. Não havia à minha volta tempo, espaço ou humanidade. Era eu e o mar, era eu o mar. Imortalidade e solidão eterna, alívio final para o sofrimento efémero.