domingo, 28 de fevereiro de 2010

Enquadrada

Acordei com um grito e aquela sensação de falta de ar. Num ímpeto sentei-me, tossi, fechei os olhos com força. Senti as bochechas molhadas e reparei que me ardiam os olhos, muito, e que a respiração me saía a galope. Estivera a chorar. Tinha acordado sufocada pelas minhas próprias lágrimas, pelo soluçar descontrolado de quando perco o controlo
Teria tido vergonha, se não estivesse sozinha. Ter-me-ia levantado e fugido a correr, se não estivesse onde estava. Mas fiquei quieta, deixei as lágrimas fluírem. Respirei devagar e senti tudo à minha volta. A areia macia acariciava-me as mãos e os pés. O vento frio arrepiava-me a pele e gelava-me o rosto. Trazia consigo o aroma salgado do mar, exótico e arrebatador. O rugir das ondas enchia-me os ouvidos, acompanhado pelo coro das gaivotas, distante. Era um espectáculo digno de se ver, com vagas gigantes a engolirem rochas e areia, a rebentarem com uma raiva letal contra quem atravessasse o seu caminho. Sentia-lhe a força como se me corresse nas veias. O mar estava escuro, mais cinzento que o aço, e erguia-se imponente das profundezas do horizonte. Era um gigante maciço com raiva do mundo, todo ele espumando.
Não sei quando parei de chorar, nem quanto mais tempo fiquei ali. Deixei-me abraçar e envolver pela praia, enraizei-me àquele lugar como se lá tivesse nascido e nunca de lá devesse ter saído.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Algures

Adormeci por entre folhas amareladas de textura suave e sabor doce, flutuando no aroma delicado do papel e da tinta, vendo as personagens de um conto qualquer dançarem à minha volta até se fundirem numa só, ouvindo vozes sem donos e falas sem nexo. Sorri para uma vida que é mais minha que aquela que o meu corpo leva, mas que insiste em escapar-me por entre os dedos. Corri atrás de uma ilusão como quem tem nos pés chinelos de quarto, grandes, moles, toscos, arrastei as pernas e fui caindo.
É engraçado como o sonho é o reverso da lei da gravidade, quando em vez de me empurrar para o chão me faz voar para longe. Algures naquelas páginas encontrei uma poção que bebi tão avidamente que ainda antes de me dar conta já estava a transbordar daquele nevoeiro mágico, místico, e foi aí que encontrei quem realmente sou. É para aí que vou todos os dias. E aí ninguém me vai encontrar.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Desabafo

Aconteceu outra vez, e eu voltei a chorar. Não foi pela dor imediata, embora ela tenha estado lá para me atormentar. Foi pela raiva, pelo medo, pela impotência, pela pouca coragem que pareço ter em relação a determinados assuntos. Foi por saber que o pesadelo nunca vai acabar, que de cada vez que ele se repete estou um pouco mais isolada do mundo que me rodeia e do qual quero fazer parte. Foi por no fundo não conseguir deixar de amar uma realidade que me faz muito pior do que o quanto (é suposto) me querer bem.
Dói-me também a vergonha. A incapacidade que tenho de falar e dizer o que se passa, o não ser capaz de repetir as palavras que ouço forçadamente e me despedaçam. Dói-me negar a verdade, para os outros e para mim. Dói-me ter já engolido todo o orgulho, olhar para dentro e ver uma poça de alma, mais decadente que ontem, mais sólida que amanhã.
Às vezes desejo poder fugir daqui, para longe, e nunca mais voltar. Outras, sei que nunca vou ser capaz de abandonar nenhuma parte de mim. E odeio-me por isso.

Desculpem.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Fossas

Sinto-me transbordar de alguma coisa que não sei bem o que é. Tenho uma angústia presa no fundo da garganta e ardem-me os olhos como se precisasse de chorar um oceano. Quero aquela paz que vem de dentro, procuro aquela força que me guia nas palavras e nos actos, mas de alguma maneira sei que ela foi embora. Tenho as mãos geladas e o rosto pálido, parece que o inverno me encheu por dentro, que a chuva apagou a chama de viver. Sei que ando fria, sem paciência, esgotada, cansada. Sei que não tenho sido boa companhia, que não tenho dado o melhor de mim. Devia sentir-me responsável e querer pedir desculpa, mas não. Não quero baixar a cabeça pelo que não sinto, nem sequer sei se quero que me venham buscar, que me tirem daqui. Estou ao mesmo tempo vazia de afectos e cheia de dúvidas. Consigo ouvir os meus alicerces tremer quando lhes dá o vento, mas estou demasiado preguiçosa para me preocupar com isso. Vou-me deixar ficar aqui. Se cair, logo se vê.

Ninguém está contigo constantemente. Ninguém está sempre do teu lado. Ninguém conhece os teus segredos, ninguém sabe o gosto das tuas lágrimas, ninguém vê o outro lado do teu sorriso. Está aí alguém?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cadillac


Balançava o copo de vinho na mão como quem agita memórias. Olhava para o líquido vermelho sem o ver realmente. Até que parecendo voltar à realidade pousou o vinho na mesa e foi em passo lento até à velha jukebox, rainha daquela à parede. Descalça, pernas nuas, com nada que não uma t-shirt larga sobre a pele morena, ficou indecisa por breves instantes antes de escolher a malha. A música pairou no ar, quente e envolvente. A bela morena voltou-se para o homem de fato que a fitava do meio da sala. Parecia desconfortável, mãos nos bolsos, olhar no chão. Olhou-o de cima a baixo. Mensageiro, reles, fraco. Todo ele emanava inferioridade, e ela não gostava disso. O silêncio dela estava a deixá-lo nervoso, e quanto mais ele transpirava e punha a mão ao nó da gravata como quem se sente sufocar, mais ela prologava o momento. Quando a música deu os últimos acordes, ela falou-lhe, devagar.
“Repete lá a tua proposta, então…”
“Um milhão, limpo, metade já. Deadline, amanhã à noite.”
“Para roubar um carro…”
“E entregá-lo impecável.”
“E qual é o carro?”
As mãos dele ainda tremiam quando abriu a pasta e de lá tirou uma folha. O seu rosto era impassível. Deu o papel à morena, ainda sem a olhar.
“Oh, não é um carro…” Um sorriso de malícia pairava-lhe nos lábios. “É um Cadillac.”

CiúMEDOr


Sentes? A raiva que te cega, a dor a dilacerar-te as entranhas, a vontade de rugir, de lutar, de ganhar. Vês? O medo a espalhar-se pelo teu corpo, pela tua mente, receio de perder, de ser pior, da solidão. Notas? Como o ciúme te come a razão, se impõe e te move sem que penses nem que escolhas.
Mas, o que fazes? Libertas porque quem ama é isso que faz, e esperas ansioso que a confiança reponha a calma, que o amor fale mais alto.
...
Será que amas?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Roxanne



Sai de noite, passo firme, cabeça erguida, cabelo solto. Leva no passo o calor do tango, tem nos lábios o sabor da luxúria e no olhar o fogo da paixão. Os saltos marcam a passada segura, o vestido preto marca a silhueta fina.
Mas quem olha não sabe, quem olha não vê. Quem a deseja está cego pela lascívia, quem a inveja ignora o seu passado, presente, futuro.
Envolta em veludo vermelho, ela seduz, ela ataca, ela finge, ela mata. Por detrás daquela máscara ela chora, ela ruge, ela luta, ela morre.
Pretas são as ondas do cabelo que se abatem em peitos vividos, e enegrecem a alma de quem navega. Afiadas são as garras que se cravam nas costas de quem paga com o sopro para sentir outras marés. Doce é o gosto do pecado, da sorte, do fado, da mentira.


Roxanne, you don't have to wear that dress tonight. Roxanne, you don't have to sell your body to the night. Roxanne, you don't have to put on that red light.