quinta-feira, 29 de maio de 2008

Cavaleiro das sombras


Acordei de repente, exaltada, suada e assustada, com um enorme nó na garganta, que me estava a sufocar, e o coração a bater tão fortemente que a sua palpitação era visível em meu peito e o seu pulsar ecoava no meu cérebro e fazia o meu corpo tremer.
Reparei que a cama estava vazia: da almofada nem sinais, os cobertores e os lençóis jaziam inertes, cada um para seu lado, no frio chão de pedra do meu quarto. As suas sombras, os seus contornos irregulares, ameaçavam-me de longe, fitavam-me continuamente. As mãos gelavam-me lentamente, sentia-me a perder o controlo dos próprios movimentos. Aos poucos estava como que petrificada ali, enregelada, uma estátua de pedra sentada numa cama, com uma expressão de pânico no rosto lívido e o olhar perdido e vazio. Sentia o próprio ar sugar-me as forças, juntamente com cada parede rugosa, cada livro das estantes, cada quadro pendurado, cada escuro objecto imóvel.
Tentei gritar e o som não veio. Tentei de novo mas não funcionava. Fechei os olhos, com uma grossa lágrima salgada a escorrer-me lentamente pela bochecha, e no silêncio chamei mentalmente por ti, uma e outra vez. Não sei porquê, mas acalmei. Aos poucos voltou o calor. O coração retomou o compasso normal, as mãos já mexiam, e as sombras pareciam ondular como de costume. Apanhei os lençóis e tapei-me. Respirei fundo e dormi.


Pode ser loucura ou ilusão da mente, mas o facto é que quando voltei a pôr a cabeça na almofada senti o teu cheiro doce, e quando fechei os olhos foi o teu beijo que me devolveu a paz.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Com Pã, rumo aos Andes!

Estou sentada num comboio vulgar, talvez demasiado vazio, com um caderno apoiado nas pernas dobradas, óculos escuros postos, olhar perdido, focado na paisagem disforme. Tenho uma caneta Bic na mão, e distraidamente vou-lhe roendo a tampa, enquanto espero que a mente esteja suficientemente vazia para que as palavras surjam.
De repente, ao dar-me conta de que concentrar-me naquelas condições seria impossível, sorri. Do meu mp3 brotavam as notas puras, de timbre característico, da eterna e inconfundível flauta-de-pã. Se fechasse os olhos via, em câmara lenta, os Andes bem à minha frente, a sua harmonia plácida, a sua calma resplandecente, o seu esplendor sábio. Se os mantivesse fechados e me deixasse levar pela melodia que deslizava para os meus ouvidos podia ver bem na minha frente os rostos morenos dos ameríndios: o seu negro olhar penetrante e inteligente, o seu imponente e magro nariz adunco, o liso e preto cabelo comprido, ao vento, enfeitado com os mais variados pendentes coloridos.
Abro os olhos, na sombra das lentes que impedem a minha observação de ser percebida. À minha volta há prédios altos, uns luxuosos e pintados de fresco, outros bem antigos, rachados pelo tempo e corroídos pela humidade, entrecortando o céu nublado, de cor indefinida. Fecho os olhos e elas lá estão, as cabanas bicudas, de vários tamanhos, suas palhas e tecidos baloiçando ao vento sob um céu alaranjado que emana frescura…ouço a flauta.
De novo a minha realidade, as pessoas errantes cheias de pressa e alheias ao mundo: mulheres equilibradas em saltos finos, de maquilhagem carregada e cabelo estático, homens de fato escuro e gravata apertada, sapatos lustrosos, malas de linhas rectas, relógios no pulso. Em todos o mesmo olhar vazio, a mesma pressa de viver, o mesmo telemóvel no bolso, a mesma solidão acompanhada num caótico mundo cheio demais. Das canas de bambu chegava o som causado pela pressão do ar que as percorria: ao ritmo da natureza, leve como o próprio ar, fluido como a água, quente como fogo e próspero como a terra, o povo dos Andes dança num compasso afinado. Sobre os corpos dourados assentam roupas manufacturadas, todas iguais mas todas diferentes; nas peles a tinta colorida grava os mais diversos símbolos, cada qual com o seu significado. Dos pescoços, pulsos e tornozelos pendem adornos diversos, penas, pedras, contas… natureza talhada pelo Homem, para o Homem, à medida do Homem.
Sei que se abrir os olhos, mesmo sem desligar o mp3, posso ouvir o som estridente das buzinas, o motor dos carros, os alarmes dos aparelhos electrónicos, a voz distorcida pelas ondas que a transmitem. Mas prefiro mantê-los fechados, respirar fundo e aproveitar estes breves minutos de calma que me estão a ser proporcionados por alguém que nada mais vez que soprar para uma cana.
É esta, minha, a sociedade desenvolvida? Não será mais Homem aquele que sobrevive em harmonia com a natureza e dela usufrui que este meu, que a destrói e a aniquila em prol de metal escuro e frio?

Hoje, eu preferia dormir ao relento sob um céu estrelado, ouvindo o canto do rio e dos pássaros, olhando os contornos da montanha, pintando os meus sonhos com pegadas descalças, sentindo nos pés o áspero granulado da terra, nos seios o macio da pele trabalhada, no rosto o frio da noite, nas mãos o macio das penas…
Preferia mesmo.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Meta-vitruviana

"A perfeição atinge-se não quando nada mais há a acrescentar, mas quando nada mais há a retirar."
Antoine De Saint-Exupery


Não há nenhuma vez que, tendo-me decidido, não volte atrás. Podem ser milímetros, pode ser em pensamento, podem ser milésimos de segundo…mas a minha decisão vacila sempre, e lá se suicida de novo a autoconfiança.
Não percebo este oco dentro de mim, este vazio palpitante, esta ausência que berra, esta falta que aperta. Tenho saudades de quê, afinal? Posso ter tudo o que quero na mão, e fazer malabarismo com isso, enquanto a população mundial grita de júbilo e aplaude. Não me é suficiente. Posso ter tudo de sobra e a vida tão cheia que até o sono precisa de marcar hora na agenda se quer ser contemplado no planeamento dos meus dias. Mas não estou satisfeita. Posso sorrir e cativar 24 horas por dia, 7 dias por semana, porque vos garanto que esse esgar nada mais é que um engenho plástico que me arreganha o rosto, a meu ver, de modo aberrante e bizarro. Estarei por detrás da massa dérmica, certamente, de trombas.
Eu penso e repenso, eu meço as implicações das minhas escolhas, eu avalio situações, eu medito, na maior parte das vezes eu até opto pelo que, dos males, parece o menor ou, caso não se avizinhem obstáculos desagradáveis, pela hipótese mais prazenteira. Mas é inútil: segundo mais, segundo menos, cá dentro urra a buzina de “erro técnico” e acendem as luzes de perigo no painel de “possíveis avarias”.


Rita Mendes picked the wrong way. Rita Mendes picked the wrong way. Rita Mendes picked the wrong way.
(Again, and again…)
Longe da perfeição. Muito longe...

sábado, 24 de maio de 2008

Meteoro-psicologia


Tomei balanço na escrita: a velha e baça Parker olha-me, entusiasmada, disposta a deixar-me segurá-la firmemente entre os dedos e fazê-la vomitar tinta até que deixem de ser produzidas cargas que a revitalizem. Eu sorrio para ela e faço-lhe o favor: o facto é que o calor na barriga causado pelas palavras de apoio que, aos poucos, me vão chegando de recantos desconhecidos (e de outros quantos bastante familiares) me motivam a continuar e despertam verdadeiros sorrisos.


Faz frio lá fora. Agora não chove, mas já choveu. Também já fez sol. Na verdade, hoje já caiu pedra e também já trovejou. Vá-se lá saber o que se passa com a meteorologia mundial, obviamente o Homem é vítima, e fazer uma petição contra estas alterações climáticas incómodas e desagradáveis talvez não fosse mal pensado. É que uma pessoa veste calções e constipa-se, põe uma camisola e transpira, compra um bikini mas é forçada a usar botas! Estou para aqui toda arrepiada, mas se me tapo não tarda que o calor sufoque. Não há direito!
Comigo, a situação está homóloga à climatérica. Num período mínimo de tempo é possível encontrar uma Rita histérica, logo seguida de outra deprimida e melodramática, que por sua vez antecede em mim uma expressão totalmente nova de angústia. Depois disso, quem sabe, talvez chore de tanto rir, ou talvez amue e me tranque a sete chaves. O mais provável é, vai-não-vai, virem a dar de caras com a explosão furacão: aí berro e reclamo, esperneio e grito impropérios, deito tudo abaixo e não abro excepções. Mas isso é coisa passageira, cinco minutos e está o caso arrumado, eu já volto sorridente e renovada. (Por favor, não façam nenhum abaixo assinado para derrubar esta minha personalidade multifacetada, ia ser complicado para a minha pessoa abrigar tanto pensamento e tanto sentimento num só modo de estar!)
Fica então a esperança de que com o mês de Junho venha o verão, e no mesmo pacote o sol e a praia. Falta pouco, e o tempo voa. A noite cá dentro é bastante iluminada pelo sagrado empurraozinho da temperatura exterior; nada melhor que sentir o sol nascer, seus mornos raios ficarem cada vez mais intensos, e saber que, por mais longa que seja a madrugada, há sempre um novo amanhecer!

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Sem freio


Acabo de colocar na testa uma tabuleta, daquelas de madeira tosca, com uma mensagem a tinta vermelha, escrita à mão, levantada antes de seca, de modo que algumas letras estão a escorrer. Essa tabuleta diz em maiúsculas: CONSCIÊNCIA À VENDA.
A mensagem está errada, percebi agora. Na verdade não ponho a consciência à venda, não quero dinheiro nenhum por ela, eu ofereço-a. Dou-a, com a maior boa vontade, a quem por ela perguntar. Na verdade eu até a ponho discretamente no bolso de quem passar perto de mim, enquanto rezo para que a pessoa não dê conta, e vou fugindo a passos miudinhos. Conquanto que me veja livre desta maldição que me persegue.
É que a consciência enerva-me. A sério. Ela tem o irritante condão de ter mais força que a razão, e isso é, no mínimo, estúpido. Ela pega no sentimento, eleva-o, e isola a vontade. Ela pega naquele lado humano vulnerável, que é aquele fraco, desprezível e vai contra a lei da vida, coloca-o ao colo, embala-o…e domina os gestos!
Carpe Diem. Mas como, se a consciência não deixa? Eu devia ter vindo desprovida disso. Foi erro técnico, devolvam à fábrica e eles que consertem (ou será que a garantia acabava aos 18 anos?). Mas não faz mal, considerem então um exame de rotina. Removam a tal consciência, também podem tirar os travões, acrescentem cavalos ao motor, aumentem a cilindrada, mudem o óleo…estofo eu já tenho que baste! Mas, por favor, ponham-me a andar!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Luto!


Luto. Luto define-me, talvez, muito mais que qualquer outra palavra que alguma vez tenha utilizado no sentido de o fazer.


Luto pela minha felicidade, luto pelo que quero, tenho força e luto, luto pelos que amo e lutarei sempre, até que da minha boca saia o último sopro, pelos meus princípios e ideais, pelo que sei que está correcto. Luto pela verdade. Luto pelo amor. Luto por acreditar. De elmo e espada aqui estou, e luto de cabeça erguida.


E luto é o resto de mim. Luto por todas as perdas. Luto por cada falha. Luto pelos momentos perdidos, luto pelos erros cometidos, luto pela dor que nos outros causei e por aquela que alguns deferiram em mim. O mais negro luto. Luto hostil, vazio, sombrio, oco, triste, profundo. Luto doloroso. Mas luto.


Que mais posso afirmar ser, então, senão alguém que lutará sempre para enterrar o luto do seu coração?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Quando amanhece


Um estímulo é suficiente para desencadear a reacção suspensa no tempo e no espaço, mesmo quando pensamos que o que já foi passado está. É hora de ponta no metro, o sobrelotado e caótico tumulto já tão habitual que quase não dou por ele, numa segunda-feira comum, arrastada e sonolenta como as demais.


Mas meia dúzia de acordes melódicos reproduzidos pelo fiel Ipod para os auscultadores, e destes para mim, bastaram para que de um único golpe a dor atacasse impiedosa, sem me dar azo a defesa. Procurei, inutilmente, esconder as lágrimas que me enchiam os olhos por detrás de óculos escuros, mas poucos foram os segundos passados até que o dilúvio natural embaciasse as lentes de tal modo que, de tão turva, a visão se tornou impossível. Talvez não devesse ter dormido...a inconsciência torpe da ressaca, do cansaço, do peso das pálpebras, o fulgor da vitória no negócio que é a bola e a leveza incorpórea que o álcool proporciona sempre serviram para me deixar em transe hipnótico, caos orbital. Agora, não tenho outro remédio senão aceitar a sobriedade.

Incomoda-me a gente; não por olhar para mim, na verdade poucos se dignam a fazê-lo, mas simplesmente por existir, por estar ali e por ter acesso à minha fraqueza sem que eu assim permita. Mas esse incómodo nada mais é que um pequeno comichão discreto quando comparado com a mágoa, que alastrava a cada lágrima e parecia disposta a tomar-me de todo.
Tive medo e hesitei. Não quis sair do metro, mecânico paraíso cinzento de aço, acolhedor retiro para quem, na obrigação de estar entre os outros, se queira sentir isolado. Faltou-me coragem para enfrentar aqueles que, mais que não fosse por rotina, iriam notar o meu comportamento e, mais que não fosse por curiosidade, iam ser inoportunos e inconvenientes ao fazerem perguntas sem a menor probabilidade de receberem resposta verdadeira. Faltou-me coragem para expor, de cabeça erguida, a vermelhidão dos olhos, que ardem e não mentem, mesmo quando todo o resto do meu ser transparece naturalmente as mais diversas ilusões premeditadas.


Arrastei-me em marcha fúnebre, cada passo mais lento e pesado que o anterior, até onde o confronto directo era inevitável; senti o tormento doloroso das correntes a arrastar no chão e, tal qual ré declarada culpada por confissão, subi as escadas (que, apesar de serem apenas do edifício, bem podiam ser do purgatório), abstraída do cenário envolvente. Não tinha o coração nas mãos: infelizmente para mim, ele estava bem distante daquele local, a salvo daquela vergonha mas preso a um tormento bem maior, sem hora marcada para julgamento final.


“Tudo passa com o tempo”, ouvi alguém dizer, certamente com a melhor intenção. O problema reside noutro hemisfério: é que existir uma solução é diferente de a encontrar, e o facto de sabermos que o relógio não pára não atenua a dor do momento nem consola a memória. A quem sente e sabe mostrar que o faz, não peço palavras: quis o destino que delas tivesse eu o dom, às vezes até demasiado explícito. Assim, embora na sombra deste diário disfarçado, agradeço os olhares de verdadeira preocupação, os sorrisos de imensurável ternura e os abraços de força dos poucos que, sensatos, me entenderam e aceitaram. Todos os outros, repúdio e desprezo: para mim não são mais que matéria em movimento, forma errónea e pouco criativa de ocupar espaço, opacos obstáculos ao esplendor do horizonte.
Agora, teimosa, de coluna torta e pernas dobradas, refugio-me no pensamento que não consigo afastar. Roo as unhas, ciente de que me vou arrepender; cerro os olhos com força na tentativa falhada de atenuar as dores de cabeça. A memória aponta o dedo, e a razão faz o seu papel. Devia ter pensado que o Tim, antes de dizer “quero-te tanto”, referiu nunca ter dado um passo que fosse o correcto, nunca ter feito nada que batesse certo. Ou talvez apenas precise de me acalmar…afinal, neste circo eu sou uma das feras.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Raquel


“Tu tens mesmo o dom da palavra. Tens um dom que te permite sonhar e fazeres os outros sonharem.” (Piu, Raquel Leite)

É nesta altura que o coração aquece, os olhos brilham e o sorriso nasce. E, sem querer, é neste momento que do fundo das costas, com um suave arrepio cortante, nasce um par de asas longas e delicadas. O seu semblante é cristalino e o seu esplendor ofusca, recortado à luz do sol. A sua primeira tarefa será levar-me a voar até ti, para que te abrace com força e te diga que te adoro assim, exactamente como és.
Um amigo é assim. É alguém que não tem presença física contínua na nossa vida, não porque não queira mas porque o tempo e o espaço não permitem, mas que arranja sempre modo de demonstrar que, algures no seu coração e na sua cabeça, nós temos um lugar especial. É alguém que abdica de si para saber de nós. Um amigo conhece-nos como somos, não só o lado forte, feliz e brilhante, mas também o fraco, cinzento e sombrio, mais aquele outro vermelho, impulsivo, alucinado. E gosta de nós assim: não nos pede para mudar, apenas para que, sem amarras nem medos, nos demos a conhecer e deixemos acarinhar.
E, assim, não me condenas, perdoas-me. Não me criticas, corriges-me. Não me enfrentas, completas-me.
Quero que saibas que o meu orgulho em ti é imenso. Que te adoro, e que esse sentimento cresce cada vez mais, alheio a toda e qualquer condição adversa. E sabes que aí, nesses espaços vazios entre os teus dedos, vais poder sempre encontrar os meus.

Obrigada.