sexta-feira, 19 de março de 2010

Eu (também) tenho um sonho


Saí do banho, entrei no quarto e fechei a porta. Em frente ao espelho larguei a toalha no chão, e olhei-me nos olhos. O profundo castanho luzia como se estivesse em chamas.

E fui mudando. A pele escureceu, ficou mais rija, curtida, o cabelo cresceu, os olhos rasgaram. O espelho quebrou em centenas de pedacinhos, as paredes do quarto ruíram com um barulho ensurdecedor. Mas os destroços não se acumularam no chão, não. Eles subiram como que puxados pelo céu e pareciam desintegrar-se. Vi que não era só o meu quarto. Era a minha casa inteira, cimento e mobília. Eram todos os prédios e moradias da vizinhança. Eram os carros, os postes, as roupas, os computadores, os placards, as estradas. O céu vacilava entre cinzentos e breu, ribombava em trovões num padrão em espiral, os raios caíam como dardos no solo que tremia levantando poeira e rugindo como uma besta raivosa. Encolhi-me o mais que pude e tapei-me o mais que consegui com os braços. Não sei quanto tempo durou esta luta cúmplice entre o céu e a terra, mas acabou tão repentinamente quanto começou.
Talvez deva dizer o que ficou. Ficaram as árvores, as rochas, os animais, a terra. Ficou o mar. Ficaram as pessoas. A natureza cresceu numa questão de segundos por todo o lado. Nasceram vales e montes, trilhos de terra batida, grutas e florestas. Os sons mudaram. Já não se ouviam motores e buzinas, telemóveis e passos apressados. Agora pairava no ar uma melodia que me embalava e enchia por dentro. Ouvia pássaros e água corrente. Ouvia um canto, algures. Ouvia relinchar. O ar cheirava a erva molhada. A cor do céu era diferente, era mais nítida. Como se o tivessem pintado de fresco. Um azul realmente celeste, alaranjado na linha do horizonte. Andei com os pés descalços na terra húmida, afastando galhos. Conforme o corpo roçava em folhas, caules, pétalas…a sensação era diferente. As texturas. Nunca sentira as texturas. Parei perto num riacho. A água corria livre, tão limpa, tão fresca. Na outra margem um cavalo branco bebia avidamente. Deve ter sentido a minha presença, porque me olhou, e no entanto não fugiu. Atravessei a pé a zona mais baixa para me aproximar da imponente criatura. Deixei-o sentir o meu cheiro e ser ele a chegar perto.


Como Homens, imaginem o final para esta história.

Se eu pudesse...

(Um pequeno extra: imagem, como quase sempre, de Luis Royo. Um artista com A grande.)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Boca do Inferno


(Este texto foi escrito originalmente há uns bons 5 anitos, quando eu era dona de uma fantasia que hoje tento recuperar mais vezes do que aquelas que gosto de admitir. Hoje resolvi retocá-lo porque nunca o esqueci, e não resisto à tentação de o pôr aqui, adorava saber o que acham dele. Peço desculpa pelo tamanho, maior do que o habitual, sei que ocupa mais do vosso tempo. Enfim. Acreditam em lendas?)


Era uma vez um terrível feiticeiro cruel que habitava um magnífico e imponente castelo junto ao mar perto de Cascais, distante da restante população. O seu nome era Zafir, era feroz, sanguinário e invejoso, mas detentor de uma beleza invulgar e extraordinária. A fama de sua negra áurea e voraz comportamento corria pela gente, que dominada pelo medo sem hesitar lhe obedecia.
O distorcido coração do mago, contudo, implorava por companhia e ardia em doentia paixão. Num olhar apenas, uma mulher com corpo de deusa e rosto de anjo tinha-o deixado sedento de amor carnal. Não passou um dia sequer até que emitiu a ordem de captura da jovem, que sem saber desafiara as leis da estabilidade. Luzia vivia sozinha numa cabana de madeira, foi fácil arrastá-la à força para longe do seu lar.
Na presença de Zafir, Luzia vociferou. Nada sentia pelo mago e queria retomar a sua vida, mas a sua força de nada serviu. Zafir queria-a só para si. E ia afastá-la de tudo e de todos, se preciso, para fazer dela sua mulher.
A ruiva foi trancada na torre mais alta do castelo, como rezam as lendas que se deve fazer. Estava condenada à solidão até que se arrependesse de ter recusado o amor do nobre feiticeiro. Era guardada pelo mais forte cavaleiro da ordem de Zafir, Tomás, que passava dias e noites ao frio, protegendo a donzela que nem conhecia do mal exterior que não a esperava em nenhum outro lugar que não na cabeça do poderoso mago. A companhia dos dois era o mar, revolto e indomável, que ambos observavam das janelas, sedentos de partilhar um pouco daquela liberdade, invejando em silêncio o poder e a magnitude daquele mundo azul.
Zafir não esqueceu a ruiva com olhos de gato que o tinha recusado, mas o seu orgulho impediu-o de a voltar a ver, e os meses passaram. Com a falta de inimigos que ousassem enfrentá-lo, Tomás não era preciso na frente do seu pequeno exército, e o feiticeiro esqueceu que, apesar de seu discípulo, o homem era de carne e osso. E a carne falou mais alto. Tomás ouvira falar dos atributos divinos de Luzia. Sabia que todos os que lhe tinham pousado os olhos em cima haviam ficado como que hipnotizados, sem de nada mais falarem. E estava preso a poucos metros daquela que prometia ser a rainha das mulheres, sem sequer conhecer os contornos do seu rosto.
Num ímpeto, sem se atrever a questionar as consequências da ideia que o invadira, o cavaleiro pegou na chave de ouro que abria a porta por onde atirava as refeições da prisioneira e aventurou-se a subir a imensidão de escadas, só parando no topo para recuperar o fôlego.
E de resto todos sabemos o que acontece quando duas almas solitárias que partilham muito mais que um segredo e desejam a mesma coisa se cruzam. Luzia e Tomás apaixonaram-se. Aos poucos nasceu das cinzas e do desespero uma relação forte.
Mais confiantes por se terem um ao outro, os enamorados depressa começaram a pensar em fugir. O oceano era testemunha do sofrimento pelo qual haviam passado, e de alguma forma os iria proteger nesta missão impossível. De qualquer maneira, não poderiam passar a eternidade naquele lugar.
Mas o traiçoeiro Zafir sabia da história dos dois desde o inicio, e como tal estava também a par do plano de fuga. O mago sentira a traição, e roído pelo ciúme e pela raiva esperava apenas por decidir o que fazer com aqueles que o esfaqueavam pelas costas. A sua mente em nada mais pensava que em como conseguir dar-lhes o que mereciam e ensinar a todos que não se podia enganar Zafir e sair impune.
Montados no belo cavalo branco de Tomás, os apaixonados percorriam os rochedos junto ao mar o mais rápido que podiam, enquanto que o vento batia forte nas suas caras, atirando os seus cabelos para trás e dificultando a vista. Nesse momento o mago traído cria do nada uma tempestade imensa recorrendo a todas as suas forças, e o assustador fenómeno abriu os rochedos que os cavaleiros percorriam como uma terrível boca de uma fera esfomeada, engolindo-os de um só trago, acabando com a sua vida e os seus sonhos, bem como com o seu forte amor. Foram engolidos pelas águas que tanto admiravam, e desapareceram para todo o sempre.
E desde aí o buraco está aberto. Hoje o seu nome é Boca do Inferno, e não há quem o visite que não sinta arrepios ao ouvir o terrível rugido do mar embatendo nas rochas. Há também quem jure ouvir o relinchar de um cavalo assustado.


(Quanto ao mago, diz a lenda que as forças que usou para invocar tamanha tempestade consumiram todo o seu ser, e que perdeu a vida no exacto momento em que as rochas se abriram e engoliram os amados. O seu castelo ruiu engolindo tudo e todos os que lá se encontravam. Com o tempo nada restou.)

De ontem para hoje

Um dia fui consumida por um desejo grande demais para caber no meu corpo, paixão que tomou formas sumptuosas e aqueceu a alma. Um dia gelei de fora para dentro, fui minguando e definhando de espírito até que o meu coração passou a gerir sozinho a vida que restava. Noutro dia atirei-me de cabeça para um qualquer abismo, sem medir distâncias nem consequências, sorrindo para o vazio como estando certa da eternidade. Ontem fui poeta, actriz, mendiga, princesa. Ontem fui tudo sem nada ser, pouco sentindo e menos vivendo. Mas hoje tenho algo mais a dizer.
Hoje descobri que posso ser inteira e feliz. Descobri que não preciso de fingir nem de inventar, que o meu mundo de fantasia pode deixar de ser um refúgio obrigatório para passar a ser apenas palco de maravilhas. Hoje adormeci no teu abraço, só porque sim. Não era de noite. Não estávamos exaustos. Podíamos fazer qualquer outra coisa juntos, ou seguir cada um para seu lado. Mas partilhámos o tempo e o espaço como quem nada teme, deve ou tem a esconder. E, de consciência limpa, deixámos o sonho vencer. Envolta no teu cheiro e na textura da tua pele sonhei com o presente. Com o presente tranquilo que vivemos hoje, com o presente que foste na minha vida e que fez tudo valer a pena, mais colorido, mais real. Acordei, e o presente do sonho estendia-se à minha frente, melhor que tapete vermelho.
(E)s(t)ou feliz por te amar.