segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Anónima (como todos nós)

Mãos nos bolsos, capuz na cabeça, andar apressado. Vestida de negro mal se vê na rua pouco iluminada, passando como se fugisse aos candeeiros intermitentes. Mas não disfarça o ruído dos saltos no alcatrão. Entra numa porta discreta, sem número nem lote, sem fechadura. Bate e entra, assim, sem diálogos.
Despe o casaco sem levantar os olhos. Sobe os degraus indiferente ao ranger da madeira, aos gemidos e aos gritos meio sufocados que se ouvem por entre portas fechadas e veludos cor de sangue, aos baques surdos nas paredes, ao enebriante cheiro a álcool e a fumos.
Entra numa porta como as outras e fecha-a atrás de si. Tira o vestido justo e as meias de vidro, deixa que lhe tirem o resto. Na penumbra pouco vê, quase tão pouco quanto sente enquanto mecanicamente faz o que tem a fazer. Geme como as outras. Grita como as outras. Hora após hora cumpre os acordos pré-estabelecidos e troca o orgulho pela sobrevivência.
Prisioneira de todas as necessidades do corpo. Assassina de sonhos. Caçadora de desejos. Túmulo de segredos. É apenas mais uma. Talvez seja uma a mais. (Mas não somos todos, de uma maneira ou de outra?)

Frágil(idade)


Toma-me. Não o digo, mas sinto na alma a chama que me arde nos olhos e já não penso, já não vejo, há muito que já não sei onde estou nem o que faço. Quero que me rasgues a roupa, que me pegues ao colo e me encostes contra a parede, que me arranhes, que me consumas até não restar mais fôlego, até que mal possa respirar.
Agarra-me. Avanço sem pensar, o passo mais firme que a razão, a pele mais quente que fogo. Vejo o teu peito arrepiado por entre a camisa entreaberta, desejo cada centímetro desse corpo que não é meu nem nunca será. O cabelo revolto. O sorriso sacana. O olhar penetrante. Os lábios…
Beija-me. O veneno dessa boca suga-me a consciência a cada segundo que passa, derrete-a, funde-a, este doce deleite corre-me nas veias e domina-me, só te quero ter.

(Paro antes de te tocar, naquele minúsculo intervalo que separa o sonho da realidade, aquela linha ténue que tenho medo de cruzar, partir em pedaços a razão porque vivo. Sinto uma lágrima escorrer-me pelo rosto, olho para baixo porque não te quero enfrentar, não sei se me olhas, se alguma vez me viste. Não sou capaz.)