segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Dá-me a tua mão



Estende-me a mão, e ler-te-ei a sina. No entanto, não a olharei sequer. Não me interessam traços longos, curtos, fundos ou superficiais. Não quero saber do cruzamento de linhas. Ah, abstracções mentais, doces ilusões... Não é esse o meu fado.
Estende-me a mão e agarrá-la-ei. Estende-ma, e verás como juntos somos capazes de compactar o destino numa caixinha de necessidades só nossa. Os búzios não são para ser atirados, são para ficar caídos na areia, são para sentir o mar, são para ser vistos e cheirados, para que alguém lhes pegue e os encoste ao ouvido apurado, com a curiosidade ingénua de quem teima em acreditar em mitos.
Estende-me a mão, mas não me peças para deitar cartas, porque não gosto de jogos de sorte; para mim há um jogo muito maior em curso, mais profundo, mais bonito. Eu sou uma carta, tu és outra. Nem sei em que mão estou, nem qual o meu valor, naipe, porque não imagem… o que interessa isso afinal? Serei jogada não sei por quem, num jogo sem fim previsível. O que me interessa a vitória?
Dá-me a mão, dar-te-ei em troca calma e paz, sem horas de meditação nem abstracção total, física, material. Não temos tempo para isso, o que passou não volta mais, de que nos vale tudo saber, se quando acordarmos do nosso transe não tivermos tempo para deixar testemunho a quem dele precisa?
Vá lá, estende-me a mão. Não tenhas medo porque não faço exorcismo, nem perderei horas com rituais mágicos. Gosto de runas, mas não atiro pedras. Creio em algo, mas não to direi, porque isso só a mim diz respeito. Só quero a tua mão.
Se ma deres, terás o teu fado. De mãos dadas correremos o mundo sentindo a cada passo dado, recordando a cada momento vivido, imaginando cada imagem que virá. Dá-me a mão, e prometo que no silêncio desse toque banal e íntimo descobrirás o que és, saberás o que eu sou, sem mistério, sem barreiras. Amarás em surdina, de olhos fechados, terás o mundo inteiro preso na mão aberta, pássaro livre que não foge da gaiola dourada sem grades nem portas, porque está lá de sua própria vontade, e isso é todo o seu propósito.
Dá-me a mão e mais nada te pedirei, porque mais nada terei a pedir. Seremos passado, presente e futuro; teremos tudo, e quem é pleno tem o destino traçado pelo ar que respira. O meu fado és tu, porque o meu coração dita que assim seja, e porque o seu bater é sentença final dum julgamento que é a vida. Crês na sorte? Eu também. Ainda queres um intermediário? Dá-me só a tua mão…


(Ontem tive a feliz surpresa de saber que, afinal, existe um universo de leitores da minha prosa ao qual eu era totalmente alheia. O meu enorme e sincero obrigada. Escrever dá um prazer muito maior quando se sabe que alguém aprecia as nossas palavras, mais ainda se esse alguém nos for estranho. Hoje posso dizer que um pequeno vazio dentro de mim foi preenchido por uma luz bem intensa. Farei o meu melhor, prometido.)

domingo, 27 de janeiro de 2008

Boémia


Dois cálices de vinho tinto a meio, entrelaçados, embalando uma conversa com intenções ocultas por detrás de palavras caras bem escolhidas.
A cera quente escorre pela vela esguia, a luz trémula da chama cintilante é reflectida nas paredes, que calam segredos e não julgam actos.
Música baixa, som harmonioso de piano e violino em sinfonia calma mas forte, num compasso com passos firmes de saltos altos. Arrepio quente espinha acima, olhar escaldante alma adentro.
Uma rosa vermelha em cima de uma mesa de madeira escura envernizada, espinhos bem afiados, folhas com orvalho fresco e puro, uma pétala caída, isolada, esquecida; ao lado um prato de loiça com bombons retorcidos de chocolate negro.
Uma mão feminina esticada para esse mesmo prato, longos dedos brancos e unhas pintadas com verniz bordeaux, ele sente na boca carnuda o prazer amargo do chocolate a derreter lentamente.
A noite é negra como breu, a lua cheia e bem redonda brilha alto, prateada, líquida, serena, vista da janela por entre os pesados reposteiros de veludo encarnado.
O coração bate forte no peito, o corpo é invadido por desejos avassaladores, a alma pede um consolo que não o pensamento, a vista já turva, a respiração torna-se mais ofegante a cada segundo. As mãos cedem ao que a mente já não controla há muito, uma alça preta de vestido de cetim escorrega por um ombro arrepiado, ao mesmo tempo que se ouve, abafado, o som seco de uma camisa branca atirada para o chão. Louca lascívia, santa boémia, sonho, realidade…quem deseja não resiste à tentação.
Nada mais que dois corpos e uma mesa na enigmática noite; um cálice observa, pesaroso, os estilhaços do outro para sempre perdido, afogado caco por caco numa mancha irregular que denuncia a luxúria de quem não bebeu o liquido derramado.
Se a música ainda toca, já ninguém ouve; se a lua ainda brilha, ninguém a admira; a pétala caída já não está isolada. My funny Valentine. Sweet comic Valentine…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Máscara


A minha mente assemelha-se, de certo modo, a um Carnaval que se aproxima a passos lentos e cautelosos: tem faces escondidas atrás de máscaras bizarras, tem palhaços mal caracterizados que não se percebe se riem ou choram, tem um toque de mistério profundo e estranheza subtil misturados com tudo o que, de tão ordinário e pestilento, os neutraliza e quase torna imperceptíveis.
Sou embalada numa melodia que não distingo entre o popular brejeiro e o alegre ritmo quente, deixo-me ir num cortejo que mistura políticos e travestis, samba e Veneza… procuro um espelho que não distorça, quero ver se sou uma criança que, pela primeira vez, veste o traje da princesa que de facto é, ou se sou, na verdade, uma adulta frustrada que, uma vez por ano, se aloja no disfarce daquilo que sempre quis ser.
Ouço os tambores e os risos, vejo as serpentinas brilhantes… sorrio. Mas depois vejo as perucas e as maquilhagens, ouço os impropérios, sinto na pele os abusos… fecho-me de novo.
A minha mente é afinal tão nacional como o Carnaval português. Ainda questiono o positivismo daí proveniente. Arrisco dizer que me sinto ao mesmo tempo o esplendor e potência do meu país, e o desânimo e falta de iniciativa da minha nação. Portugal nunca será mais do que aquilo que dele fizerem os portugueses. Eu também nunca serei mais do que aquilo que tiver forças para alcançar. Tiro a máscara. De vez. Atiro-a para longe. Será agora?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Dualidade


Cega de raiva e de dor corri para o exterior daquele espaço limpo e arrumado, cuja máscara decente e cautelosa protegia, tapava por completo a sua obscenidade, o seu odor repelente, o seu real propósito obscuro e ilegal. Apropriei-me de um espaço ao qual, na verdade, eu jamais poderia pertencer, tentei sem resultados adaptar-me ao sistema falhado.
Já não dava para aguentar nem mais um segundo. Fugi para lado nenhum, na rota errante dos vagabundos perdidos e dos sábios desesperados. Tomei o atalho dos pobres de espírito e percorri velozmente a viela dos cruéis. Quando dei por mim tinha chegado, imune, ao paraíso das sombras.
Ali nada existia, nada era, nada vivia, não havia mundo material. Vi monstros, bruxas, dragões, vampiros, dinossauros. Vi cavaleiros, duendes, fadas, heróis e elfos. Se vi Homens, não me dei conta. Vi a água da vida eterna, a pedra filosofal, o pote de ouro do final do arco-íris e um bando de gambozinos voando. Nada é verdade. Vi Deus, o céu e os anjos; vi Lúcifer, o inferno e as bestas. Não há de facto separação, nem muros ou barreiras, tudo é um todo, junto, único. Real ou imaginário estava ali e era um.
De repente senti-me desfalecer, como se finalmente eu, a falha sem elemento dual daquele mundo, tivesse sido encontrada e precisasse de ser retirada dali antes que fosse tarde demais. Quando acordei estava deitada na areia, as ondas lambiam-me já os pés descalços. Estava só numa praia deserta. Levantei-me e segui. Não tinha destino, não havia para onde ir. Ia começar a minha vida do zero com a certeza que não mais voltaria a confiar, com a certeza que quem constrói o destino sou eu.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Passado


Amo o que já foi. O passado é para mim fantástico, brilhante, magnifico, perfeito, simplesmente porque, e tal como o próprio nome indica, passado está, já foi, não volta mais, ocorreu e terminou.


A dor que senti ontem já passou; dela hoje apenas resta a memória. A paixão que dantes senti invadir-me e tomar-me de todo hoje apenas deixa ténues marcas da sua avassaladora passagem. E, tal qual estes, todos os outros momentos estão ultrapassados, vividos, corridos.


Sou, no fundo, uma espectadora inerte na margem de um rio que é a vida: o rio passa, as corrente fluem, a água escorre pelos meus dedos e eu posso vê-la, tocá-la, senti-la. No entanto ela vai e não volta mais, a gota que passou seguiu o seu rumo e não parou por minha causa, eu vivi esse momento se quis, se o deixei de lado não o terei mais.


Amo o que já foi, simplesmente porque já não é e não mais o será.




(Com um enorme pedido de desculpas por todo o tempo em que a minha palavra esteve ausente)