domingo, 30 de março de 2008

O eterno vaivém de quem deveria ficar



Vi-te ir embora do mesmo jeito que chegaste: demasiado depressa. E, exactamente como no princípio, não sei o que senti ao aperceber-me disso.
Eras mais um entre os demais. Mais um naquela massa de corpos errantes, que eram literalmente demais. E de súbito o comportamento alterou-se e algo faiscou cá dentro. Num dia apareceste com um sorriso no rosto e olhar meigo, e foi a persistência desses dois elementos, associados a uma ternura dócil, que distorceram a minha rígida negação até que ela se tornasse numa saudável dependência. E bastava-me saber que estavas lá a qualquer hora e que me ias receber para que o dia corresse fluido e o meu respirar fosse leve. Dei por mim acostumada a essa tua presença aconchegante que me reconfortava sempre e que não me traia, simplesmente porque não tinha como nem porquê. No fundo, não me eras nada, nem eu a ti. Mas, e sendo ambos livres para traçar nosso rumo, não precisávamos de rearranjo para conjugar destinos. Corríamos lado a lado porque a vida permitia e a vontade ditava.
Vem o tempo e tudo distorce. Os demais que já referi parecem ter uma vida tão folgada que lhes permite interferir na nossa. E o nosso destino dá voltas sem sentido, estremece, encurva e puxa com força indomável em sentido contrário ao da paz interior. Agora os nossos passos já não podem ser dados lado a lado, não porque a vontade não dite mas porque é a matéria e o poder quem tem mão de ferro. Contra eles de que vale o coração?
Não é do canto do olho que te vejo partir, mas de um qualquer recanto da alma, que cheira a bafio e está cheio de pó. O desejo não grita de raiva, porque a dor é forte demais e o aperta e cala, senão certamente que o faria. Não choro, porque, se nada tinha, claramente nada perdi. Mas também não sou capaz de sorrir, nem de falar, porque a garganta secou e o cérebro parou momentaneamente de funcionar.
Não quero palavras, nem falsas ajudas. Talvez queira um ombro, se for o certo. Afinal ainda respiro, e desta vez deixei a porta aberta: errar uma vez é admissível e até saudável, mas duas já seria burrice. Além do mais, se ela para mais nada servir, sempre posso pôr a cabeça de fora e sentir a brisa fresca na cara.

Agora o que quero, sem dúvida, é o silêncio e o vazio, para que neles me possa afundar até que o pensamento domine a mágoa; até que o tempo, esse eterno agente duplo e por vezes infiltrado, leve do meu pensamento a saudade, cicatrize a ferida no meu coração e permita que a memória feliz consolide.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Gota a gota


Água. Água por todo o lado. Ouço-a, impiedosa, a bater forte na vidraça, assume a forma de chuva, é indiferente à chegada da Primavera, está decidida a ficar e a demonstrar sua força. Sinto-a, ainda quente, a escorrer dos meus olhos, que ardem, a morrer lágrima por lágrima na minha boca, deixando um vago sabor a sal, que me lembra o mar. E por mar…
Arrasto-me, pausadamente, até ao lavatório. Nem olho o espelho, não quero passar pela tortura de ver o meu próprio reflexo e sentir a rendição da minha alma afixada nos meus olhos. Abro a torneira, deixo correr o líquido pelas minhas mãos frias e pálidas. Mais água… pois então água que seja.
Arranco do corpo a roupa amarrotada, atiro-a para o chão, peça por peça. Entro no duche, fecho a cortina por força do hábito e abro a torneira da água quente no máximo. Em pé, sinto o fluxo quase cortante a bater-me com força na cara, a despertar-me os sentidos, ouço o seu correr crepitante. As gotas escorrem-me para a boca entreaberta, deslizam-me pelas costas… um arrepio frio percorre-me a espinha, contrasta com a atmosfera quente daquele espaço apertado. Agora sou só eu, envolta num mar líquido de vapor quente, sou eu que me entrego à água que grita por mim, sou eu que já grito com ela.
De olhos fechados, decidida a ceder por completo ao prazer da sensação, deixei escorrer água e espuma pelo corpo nu. Senti cada centímetro que as mãos tacteavam, mãos que não eram minhas. Entrego-me. Senti lábios molhados no meu pescoço arrepiado, que estiquei para trás, que cedi. Entrego-me. Húmido, quente, molhado, suave, definido, limpo, triplo, dual, uno.
Abri os olhos, fechei a torneira, abri a cortina. Molhei a tijoleira com os pés por limpar, só depois puxei com força a toalha turca, que embrulhei em meu redor, distraidamente. o espelho, agora totalmente embaciado, mostrava uma imagem desfocada, impercisa, tremida. Olhei pela janela, e já não chovia. Eu também já não chorava. Todas as torneiras estão, por agora, fechadas.

terça-feira, 25 de março de 2008

Janela do olhar

Estou sentada no meu quarto, na minha própria cama dura, costas na parede gelada e olhar preso no horizonte cinzento, recortado por entre paredes sujas de humidade e muros repletos de musgo. Os meus pés gelam dentro das meias cujo propósito é aquecer, o meu tremer contrasta com a respiração quente, que abafo por entre os braços cruzados.
Engraçado como a vida parece congelar quando paro para reflectir, e correr normal e indiferente quando ponho alguma das minhas máscaras. Durante semanas a fio procurei desesperadamente fugir de mim. Recorri a todo o tipo de ocupações para me abstrair, corri contra o tempo para que o cansaço do meu corpo fosse mais forte que a dor da minha alma, para que o mundo me levasse na sua corrente maciça e me impedisse de cair em mim. E consegui.
Nem sei quantos dias passaram sem que realmente usufruísse deles. O quotidiano girou à minha volta num compasso de sons díspares, cores tremidas, sensações deturpadas e sentidos entorpecidos. Quando chegava a noite o cansaço era tanto que a consciência apagava mal a cabeça batia na almofada. Vivi como fantoche, sorriso nos lábios e olhos turvos, palavras ocas em frases vazias, humanidade gerida em função do rendimento. Escondi a dor por detrás de ovos de chocolate e pregadeiras de feltro colorido. Apaguei a mágoa com recurso a música talvez alta demais. Calei o grito que crescia na garganta correndo quilómetros. Ainda assim, cheguei a chorar. Nem a isso me permiti. Mortifiquei as lágrimas em lenços de papel áspero, mas não consegui disfarçar a vermelhidão dos olhos. No entanto rodeei as perguntas que pediam resposta sincera recorrendo a substitutos baratos e credíveis. Como sempre, deixei-me enterrar um pouco mais neste buraco que eu própria escavo.
Agora, tal qual estou, calma, lúcida, olhando distraidamente pela janela, fragmento-me em constatações. O facto de ser como sou condena-me a esta solidão acompanhada e, por mais que a tudo me entregue, apenas uma coisa será capaz de preencher este vazio cá dentro, que me consome o calor.
Roo a tampa da caneta, desvio o pensamento e finto memórias felizes. Lá fora não há movimento, nem barulho. Em meu redor, rostos familiares fitam-me acusatórios, consigo sentir nas suas expressões estáticas um recriminar fundamentado. Não preciso de palavras. Eu sei quem sou, como sou.

domingo, 9 de março de 2008

Ampulheta


O meu passado usa lentes. Entretanto, sou eu quem vive assente numa imagem do real que reflecte, que refracta, que é difusa, desfocada, às vezes escura, outras de um brilho tão ofuscante que encandeia. O meu passado usa lentes, e eu não sei até onde é verídica a noção do que vivi, não consigo definir a ténue linha que separa o raio que chegou e aquele que na verdade interpretei e assumi.
Hoje, o meu presente é cego: guia-se por palpação num terreno que desconhece, tendo por princípio bases que oscilam como areias movediças, que ora sugam lentamente mas num compasso afinado, ora parecem inócuas e até apetecíveis. Entretanto eu perco-me, divago, desespero. O tempo escorre pela vidraça; observo, melancólica, as marcas que cada gota deixou à sua passagem. Suspiro, como eu suspiro. Do fundo de mim vem uma força que dispensa dimensões, que deixa o tempo para quem insiste em usar relógio, que se ri da relatividade absurda do espaço. As lentes do meu passado foram embaciadas pelo ar quente que expirei, hoje olho-as, penso nelas e, deixando-me guiar pelos sentidos, faço nelas desenhos irregulares com o dedo. Mais ar quente. A lente cada vez mais baça e eu cada vez mais perdida.
No fundo, não sei bem do que reclamo. Se o meu passado usa lentes, o da humanidade cedo acusou diagnóstico de cegueira. À minha volta vagueiam, errantes, almas tremidas que sofrem de miopia, cataratas, estrabismo, conjuntivite. De quando em vez lá surge quem bem veja, ou tenha recorrido aos óculos. A maioria simplesmente ignora a doença que os consome e degrada.
Não sei que luz é esta que hoje chega, que amanhã iluminará, e que já ontem cá esteve. Mas, acima de tudo o resto, essa luz está cá, e sou eu quem decide se o seu propósito é iluminar, guiar ou simplesmente estar presente, esperando que eu dela necessite.
E agora cá esta ela. Essa ampulheta de lentes que me olha e sorri, que tem dentro uma massa heterogénea hipnotizante indefinível. Afinal só tinha visto a parte de baixo. O meu futuro, felizmente, também usa lentes!