quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Primeiro amor


Houve, uma vez, um primeiro amor. Aquele que chegou não se sabe de onde nem quando, vindo por alguma razão desconhecida, que nasceu do nada num descampado virgem e se apropriou, regendo tudo à sua volta pelas suas regras.

Mas que regras? Quais são realmente os traços que definem o primeiro amor? Para mim, nada mais que o excesso, o exagero. De tudo. Primeiro, há demasiada curiosidade, demasiada vergonha, demasiado medo, demasiado nervosismo, quando damos por nós gostamos demasiado, vivemos demasiado, tudo à nossa volta é perfeito em excesso. Depois surgem demasiados ciúmes, demasiados suores frios, dói demais, volta-se a ter muito receio, e tem-se tanta saudade que se acha inclusivamente que se vai explodir. Se passar, as demasiadas emoções contidas dão origem a um demasiado efusivo reencontro, e do demasiado escuro buraco onde haviamos caído emergimos com uma velocidade demasiado grande para um patamar alto demais, onde tudo volta a ser demasiado bom. E o tempo vai passando, com os sentimentos e as emoções a explodirem mesmo á flôr da pele, e vamos aprendendo, até que chega ao fim, até que não dá mais, até que a situação se torna insuportável e a relação acaba. É o inferno, o buraco mais fundo, a maior queda de sempre, a dor inimaginável, as lágrimas que não param de rolar pelo nosso rosto. É o pesadelo do qual pensamos que jamais voltaremos a sair vivos, e o nosso coração está partido em tantos bocadinhos que não só pensamos que nunca mais o poderemos reconstruir, como que nunca mais gostaremos a sério de mais ninguém.

Isto é, no entanto, apenas uma semi-verdade. O coração parte, mas por mais pequenos que sejam os estilhaços há sempre alguém capaz de os colar todos de novo, com paciência, devagar, ao nosso ritmo. Não fica como novo, restará sempre a cicatriz, mas continua funcionável. Depois do primeiro amor de facto não há outro... como ele!

O tempo ajuda a que apareçam mais e diferentes amores. Alguns mais verdadeiros, outros mais seguros, uns mais loucos, outros que nos deixam e fazem sentir mais felizes, uns que duram mais, outros que quase nos passam ao lado e poucas são as lembraças que dele deixamos e talvez até algum que dure para sempre. Mas o facto é que nenhum é tão fortemente "mais" como o primeiro. Porque o primeiro era mais tudo, era mais para o bem e para o mal, foi a descoberta de nós mesmos e de um outro que nos interessa tanto ou mais que nós próprios. Foi o desbravar de um mar desconhecido e inexplorado, havia em cada segundo o gosto forte da descoberta, do novo, que nos fazia querer tudo ao máximo... e foi. Um primeiro amor nunca pode ser mais um amigo. Um primeiro amor jamais será mais um.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Morte na calçada


O som grave e mortal estoirou na noite, e foi abafado quando certeiro atingiu o seu alvo. Na calçada caiu como que em câmara lenta uma gota translúcida de seu sangue espesso, e do seu peito aberto corria agora um rio vermelho, vivo e silencioso. Lenta e pesadamente o seu corpo sem forças caiu para trás, a sua expressão alegre desaparecia a cada segundo que passava.
Os passos dela ecoavam agora pela rua, breves, assustados e apressados, procurando desesperadamente poderem anular o destino traçado pelo tempo decorrido. Sem conseguir comprimi-lo na garganta por mais tempo, ouviu-se então o som estridente do seu grito sofrido, cortando o silêncio, rasgando o breu da noite fria como uma faca aguçada. Agora, lágrimas rolavam pelo seu belo rosto, corriam de seus olhos ferozes e rápidas, quentes, como se sua alma ardente de dor transbordasse. Desesperada e inconsolavelmente, a doce morena pedia agora aos deuses que as suas lágrimas pudessem ser antídoto milagroso para o mal consumado, mas bem dentro de si sabia que nada poderia ser feito para anular o vampiro sedento de sangue que na noite atacara impiedoso, cruel e mortífero.
Em silêncio, sofrendo o recente luto de seu amor eterno, a rapariga baixou-se, e agarrando o seu amante cadáver nos braços deu-lhe um forte beijo na boca, um último beijo de despedida, simbolizando o adeus que não tivera tempo de dizer.
E eu, escondida nas sombras da cidade maldita e suja, via a cena como mera observadora, sentia o que cada um sentia, e analisava a situação. A adrenalina e precisão do assassino, a surpresa e fraqueza da vítima, a dor e sofrimento de sua amada... tudo aquilo alimentava o meu espírito, dava-me forças e fazia-me vibrar. Por mais que tentasses que a consciência do assassino pesasse, por mais que quisesses remediar a situação, tu, ó Deus do Bem, eras impotente face a mim. O assassino sentiu a prazer e a força de ter a vida de outro nas mãos e poder acabar com ela, e a morena apaixonada sabia agora que por muito que isso lhe custe, o mal acaba por ganhar. Não tens como vencer esta luta.
Contente, sorri. Enquanto o mal reinasse na terra o reino das bestas estava assegurado. Pus as mãos nos bolsos e assobiando desci a avenida. Tinha mais trabalhos a acabar.

sábado, 6 de outubro de 2007

Força


De rastos, cambaleando desamparada por entre os escombros de uma sociedade cadavérica, rastejo inconscientemente para lado nenhum, deixando perdida no chão negro e sujo uma linha rubra de sangue que escorre, incessantemente, de meu peito aberto.
Cá dentro, o ritmo cardíaco desta máquina anestesiada é cada vez mais fraco, o som seco e vibrante do seu bater é cada vez mais baixo. No entanto o meu espírito, assustado, angustiado, mas corajoso, luta desesperadamente pela sua liberdade, grita silencioso libertando a raiva, incandesce num fulgor alimentado por uma ténue esperança de voltar a viver.
No princípio atacou a escuridão, negra como breu, assustadora, mórbida, tenebrosa e fria. A sensação foi instantânea e derrubadora, uma solidão total, uma falta de tudo e de todos. Lágrimas subiram aos meus olhos, quentes e grossas, e lentamente escorreram pelo meu rosto, deixando para trás as cristalinas marcas da sua passagem. Ao senti-las em meus lábios o seu gosto salgado despertou os meus sentidos, e decidida a combater qualquer fúria ergui-me de novo, e gritei com força a minha vontade de voar mais alto.
Mas a simples reacção não chegou. Meus olhos cansados não se adaptaram ao preto baço que me rodeava. E depois o silêncio, pesado, penetrante, vigilante. As vozes dos outros, que um dia ouvi e me fizeram sorrir, pensar, agir, viver, calavam-se agora uma por uma, num silêncio eterno. Se o primeiro calar me aliviou, aos poucos morriam também os que me faziam falta, as vozes da minha alma. Por fim fiquei sozinha, fraca e desamparada. A luta contra as trevas gastara as minhas forças, e cada vez mais rebaixada sentia-me ceder á loucura, lenta mas certamente, como um massacre, uma tortura horripilante e arrasadora. Já não tinha o que chorar, nem porque chorar. Em mim já só eu existia, eu em alma, aprisionada num corpo destinado ao bolor da terra, presa a um destino fatal.
Aguda e violenta, surgiu num arranque a dor em meu peito. Ao pôr-lhe a mão apercebi-me sem surpresas de que estava nua, e que em meu corpo desprotegido e arrepiado habitavam agora feridas, queimaduras, cicatrizes, marcas de tempo, de dor, de morte e de pavor, marcas que não via mas sentia. O sangue que corria em minhas veias fugia agora por inúmeras ranhuras. Ele próprio, envenenado, alimentava a terra com sua acidez, e deixava manchas invisíveis na escuridão que rodeava.
Caí. Já não agia, nem pensava. O próprio rastejar era apenas a expressão da pantera presa em mim, que se recusava a padecer agarrada á realidade.
E foi então que surgiu, ao longe, a luz. Um ponto ínfimo, quase nulo, mas existente. Fechei os olhos e mesmo assim via-o. Percebi que não era vida. O que quer que fosse, sonho, mito, ou morte, era a saída pela qual minha alma chamou no silêncio, era a magia que evoquei da gruta mais profunda do centro do meu ser.
Calma, sorri. Sabia que estava tudo bem agora. Tu vinhas aí, o que quer que fosses, e eu esperaria por ti. Aliviada, adormeci, senti ainda o cheiro imundo e pérfido a morte quando a minha cabeça bateu seca no chão.
“Vim-te buscar.” A tua voz doce e transparente ecoou como música nos meus ouvidos. Nas tuas asas mágicas de cristal levaste-me para onde o céu não tem nome. O que aconteceu? Não sei. Desde esse segundo não mais acordei.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Dor de viver


A porta rangeu, leve, baixo, fria… como um murmúrio quase inaudível aos ouvidos desatentos do comum humano, como um grito horripilante de uma besta esfomeada para quem só desejava que ela se mantivesse fechada.
Tentando disfarçar o tremor não de frio, ou talvez um pouco, mas mais de medo, cobri-me com os lençóis e cerrei os olhos e os dentes. Ouvia os seus passos lentos, calmos, planeados, sem pressa de chegar ao destino porque ele não podia fugir, passos decididos e vitoriosos, passos desumanos e insensíveis. O chão parecia gemer comigo, por simpatia ou talvez por pena, e já não havia como disfarçar o meu desespero. Também de nada valia, simplesmente tinha de aceitar a minha condição e o meu fado.
“Shhht…” disseste ao meu ouvido, apenas alto o suficiente para que as lágrimas se soltassem de meus olhos. Enrolei-me e afastei-me, procurei sem resultados fugir ao toque húmido de tua mão, que buscava desejosa o meu corpo nú. “Sai!” gritei, talvez mais alto que o necessário, gritei para que o mundo me ouvisse e para que todo ele se desintegrasse, para que ficasse só eu e o meu canto escuro, só eu e o meu choro, só eu e a minha dor. Não saíste, e não tive como afastar-te. Não te quis, e não tive como negar-te.

Insónia


É noite. Abro a janela e a brisa invade os meus sentidos, a lufada de ar fresco atordoa-me ao mesmo tempo que o inspirar me desperta. Irónico. Como pode o inspirar me despertar, se a razão de estar à janela é ter insónias?

Tentei dormir, é facto que ninguém para além do meu relógio de cuco o pode confirmar, mas também a ele ninguém pergunta. Não sei porquê, é boa companhia, bom ouvinte e óptimo companheiro, sabe da minha vida e narra-a como páginas soltas de jornais velhos, sujos e amarrotados perdidos a um canto qualquer. Mas cala-se, porque ninguém o questiona, as pessoas preferem imaginar. As voltas que a vida dá são mais violentas que as da minha máquina de lavar (e ela já é tão velha que isso se torna complicado.).

Retomando, estava deitada, de costas no colchão duro, de olhos bem abertos fitando o tecto onde sombras indistintas se reflectiam. O silêncio era perturbador… aquele silêncio demasiado estranho. As folhas das árvores estavam quietas, os gatos não miavam alto nos telhados, os cães simplesmente tinham decidido entrar de greve ao seu ladrar grave, nenhum vizinho ouvia as noticias alto de mais nem nenhum casal resolvia brindar-me com a fantástica narrativa, asneiras incluídas, dos seus conflitos domésticos. Talvez por serem quatro da manhã. Não, há cães acordados às quatro da manhã. Contei carneiros, mas não deu. Eles já eram centenas, já me fugiam das cercas, a minha bola de sonho era uma massa branca felpuda e já nenhum pastor aguentava. Rebentei-a e decidi levantar-me.

Agora cá estou. Afinal há brisa. Som não, parece que o mundo fez voto de silêncio por hoje. Luzes também não há… definitivamente não me consigo entreter com nada. Logo, meu amigo imaginário, importas-te de aparecer???