sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A ilusão da saudade


Por vezes estamos juntos e não te tenho, tenho-te perto e não te sinto, não posso dizer que não te vejo mas não me preenches.

Há um vazio em mim e, de noite, é preciso que a saudade desenhe na minha mente as tuas linhas perfeitas, cada traço do teu rosto, a tua silhueta exacta, o teu perfil delicado.


É preciso que a tua ausência se faça sentir de um modo tão abstracto que te personifique como um desenho no ar, imagem mental nítida sobre uma paisagem desfocada.


Mas é preciso, também, que seja uma invasão de frescura e vida para os meus sentidos. É preciso saudade para que em mim desperte uma força misteriosa domadora, uma presença vital que urra.


E quando surges és tão múltiplo e imprevisto que nunca te pareces com a imagem mental que traço, e tenho de fechar os olhos para te ver com clareza.




Tive saudades tuas. Tive, em cada segundo passado noutro lugar que não os teus braços, necessidade de sentir o teu cheiro, o teu toque, o teu beijo. No meu pensamento desenhei-te mil vezes, tracei mil planos, vivi mil momentos contigo. Enganei a saudade iludindo a razão, e fingi a mim mesma que podia atenuar a paixão.


E de repente vieste de novo, invadiste cada pedaço de mim, tomaste-me por completo e vivi. De repente todos os sonhos criados se rasgaram em pedaços e arderam, de repente nada mais senão o presente e um tormento de sensações e sentimentos. Só aí, quando já não reinava a saudade mas sim a realidade, soube o quanto senti a tua falta. Só aí dei conta de que não faz sentido nenhum dia sem que sejas parte de mim. Só aí vi o quão efémeras são as dúvidas e as incertezas, o quão frágeis são as ilusões face á força da tua presença no meu mundo. Preciso de te sentir, mas juntos somos unos, plenos, invencíveis, intocáveis, eternos.




(Sei que vai voltar a solidão acompanhada, a "dor de pensar", a saudade sem distância ou tempo que possam parecer justificá-la. Só nós dois sabemos. Sei que vou voltar a pintar quadros de nós dois. Mas também sei que a cor só vai voltar ao meu universo no dia em que a saudade evaporar. Até lá, estás á distância de um pensamento.)




Faz acontecer, que eu faço valer a pena.


Amo-te @

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Tudo

Deste-me a mão.

A vida segue no seu passo seguro, ao mesmo tempo sempre igual e totalmente discrepante. Vejo segundos arrastarem-se até à eternidade, vejo horas passarem num estalar de dedos, penso em dias que demoraram séculos a chegar, olho para trás e o passado distante foi, na verdade, ontem.
Já cai, já sorri, já desesperei, já respirei liberdade, já sufoquei, já abracei o mundo, já gritei por socorro, já sequei lágrimas alheias, já chorei a minha própria alma.
Os problemas não desaparecem, os obstáculos nunca sairão do caminho, vou sempre ter raiva daquilo que me deixa impotente, vou sempre parar na teia da rotina banal. Vou voltar a cair, vou de novo gritar em silêncio de cabeça erguida ao céu, joelhos no chão e punhos cerrados. Rolarão pelo meu rosto mais lágrimas, voltarei a sentir um vazio por dentro, nunca vou aceitar as correntes que sempre me vão perseguir.
Mas agora é diferente. Agora tenho aquilo de que sempre precisei. Deste-me a mão, sorriste para mim, aqueceste-me por dentro, derreteste o gelo que me bloqueava a humanidade. Muito mais que um amigo, muito mais que um amante. O amigo, o amante. O meu homem, aquele que eu quero, aquele que vale a pena, aquele que é imperfeito mas ideal. O meu sonho. Tudo o que podia pedir, muito mais do que ousei, algum dia, imaginar.
És parte de mim. És vital, crucial, único, especial, insubstituível. És tudo o que preciso para olhar o mundo de frente, vê-lo a preto e branco, e sorrir. Afinal, és tu quem pinta o meu cenário, quem enche de cor o meu quotidiano. Preciso de ti.


Força. Motivação. Asas. Estímulo. Apoio. Protecção. Amor. Carinho. Sinceridade. Sonho. Exemplo. Ídolo. Beleza. Inteligência. Fé. Paixão. Paz. Tranquilidade.


Tudo isto e muito mais. Não te traço horizontes. Amo ver como chegas sempre mais longe.

Amo-te sem vírgulas, sem ponto final, sem pontuação.
Amo-te em círculo: sem inicio nem fim.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Um pensar que se impõe

Acordei de repente, mais uma vez, a meio da madrugada escura, sem motivo aparente para este súbito despertar. Não tinha os olhos turvos de sono nem o raciocínio lento de quem é arrancada dum sonho profundo, não bocejei nem procurei anichar-me comodamente na posição retorcida do costume para voltar a dormir. Já conhecia este momento.
Mortifica-me a noite neste quarto claustrofóbico e atulhado de memórias. Durante o dia, rodeada de gente que aparenta correr de lugar em lugar com propósito fundamentado, não custa ser só mais uma: basta expor o corpo, que a alma se esconde automaticamente. Mas, de noite, não há o cheiro hipnótico da multidão e do fumo dos carros, o ruído demasiado alto de vozes que a outras se sobrepõe e de máquinas cinzentas, não há turbilhão de cores, aromas, sons, toques…não há nada que encha a cabeça e iluda o pensamento.
Acordo só, tal qual me deitei, alheia às sombras difusas e ao silêncio mórbido. Acordo, sento-me de costas encostadas à cabeceira da cama e pernas encolhidas entre os braços e resigno-me: não há como negar alguns minutos de consciência à mente, só eu comigo, reflexo erróneo num espelho que tanto distorce.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O (ciculo perfeito, determinante definido)


O extraordinário surge quando a respiração quebra. Quando a metamorfose do mínimo faz de cinzas gigantes, quando dramas esfumam frente a sorrisos, quando um momento conta para a vida, quando o sentimento fala através das mãos.
Especial é a imagem do vivido que sem licença fica gravada na memória, é a chama do olhar que a chuva não conseguirá nunca apagar. Especial é ter certezas num sentido e ainda assim deixar o impulso guiar para o outro, e, no fim, sentir o peito romper de orgulho e felicidade.
Único é aquilo que salta à vista num mar de clones, é aquele que faz com que o coração salte pela boca, é o reconhecível de olhos fechados e pulsos acorrentados, é um cheiro inconfundível.

(Depois de ti, os outros serão reticências.)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Quis escrever

Quis escrever, hoje, por fim, por serem já demais as memórias que colecciono desde que o fado nos cruzou os destinos ao unir os nossos lábios. Já não aguento, a alma que julguei ilimitada em expansão acusa a cada segundo uma sobrecarga perigosa de sentimentos, emoções, pensamentos, sensações.
Quis esconder, até agora, a intimidade por onde pude, por julgá-la excessivamente pura, bela, frágil. Fui guardando em segredo, á parte de palavras rebeldes que espontaneamente brotavam de minha boca, o efeito da tua presença no meu mundo. E, com cuidado e perícia, montei em pensamento um arquivo de nós dois, que dia após dia aumenta. Era tão mais fácil expô-lo da forma que melhor sei. Mas não. Afinal, que direito têm os outros de conhecer este jardim proibido, porquê dar forma ao transcendente de modo a torná-lo mais acessível e facilmente interpretável se, para nós, o importante é claro?
Ainda assim, hoje mudei de opinião. A fragilidade, existindo, não é mais que falta de força minha e, de resto, cada recordação é um motivo de orgulho.
Faltam-me as palavras. Desta vez não é meu o defeito, talvez não chegue mesmo a ser erro humano. Quis o destino que o sentimento fosse demasiado grandioso para ficar encerrado entre letras e sinais ortográficos. Perderiam as asas, o toque único, a beleza. As palavras que ainda não foram inventas, quem as tem o privilégio de sentir jamais ousará atribuir-lhes um nome.
Para nós, há aquela palavra que corre o mundo e move as massas, aquela que ninguém entende, define, compreende na totalidade. O verbo que circula na boca de te todos, sem excepção, sem por isso ficar banalizado. A teia intrincada de tudo e mais alguma coisa, do possível e impossível, a retrospectiva pessoal e colectiva actualizada ao segundo, o leme da humanidade: amar.
Amar é um círculo: entrando nele são muitas as voltas, infinitos os pontos possíveis de percorrer e indescritíveis (senão mesmo inatingíveis) os extremos…a única certeza é a de que, tal como não houve princípio, também não haverá fim.
Pensei, anteriormente, já me conhecer. Hoje sei que me descubro a cada dia, que o sentimento que nos une me reinventa e que na tua presença me renovo por dentro, lavagem instantânea de impurezas fúteis.
Quando os meus olhos te encontram, ma, céu e terra perdem grandiosidade face ao esplendor que o brilho que o meu olhar alberga. És-me tão precioso, tão íntimo, tão especial e incomparável que despertas, propositadamente ou não, o melhor e o pior de mim, com a naturalidade de quem respira.
Julguei, há tempos, que a felicidade e a plenitude estivessem numa vida composta por bons momentos. Hoje sei que a utopia não é a felicidade, mas a definição que lhe atribuí. Ser feliz é saber ultrapassar os obstáculos e deles retirar sabedoria, é ter prazer nas pequenas coisas e viver a vida de coração e alma aberta, um dia de cada vez.
Aceito-nos como somos, como estamos. Confio em ti como em mim, dou-te a minha mão e dar-te-ia a vida ciente de que não correria perigo. O tempo fará por nós o que só ele pode fazer e, nesta noite como em tantas outras já passadas ou ainda por vir, adormeço embalada na beleza do teu sorriso, alma inundada de luz, e, plena, grito ao mundo que te amo.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Cavaleiro das sombras


Acordei de repente, exaltada, suada e assustada, com um enorme nó na garganta, que me estava a sufocar, e o coração a bater tão fortemente que a sua palpitação era visível em meu peito e o seu pulsar ecoava no meu cérebro e fazia o meu corpo tremer.
Reparei que a cama estava vazia: da almofada nem sinais, os cobertores e os lençóis jaziam inertes, cada um para seu lado, no frio chão de pedra do meu quarto. As suas sombras, os seus contornos irregulares, ameaçavam-me de longe, fitavam-me continuamente. As mãos gelavam-me lentamente, sentia-me a perder o controlo dos próprios movimentos. Aos poucos estava como que petrificada ali, enregelada, uma estátua de pedra sentada numa cama, com uma expressão de pânico no rosto lívido e o olhar perdido e vazio. Sentia o próprio ar sugar-me as forças, juntamente com cada parede rugosa, cada livro das estantes, cada quadro pendurado, cada escuro objecto imóvel.
Tentei gritar e o som não veio. Tentei de novo mas não funcionava. Fechei os olhos, com uma grossa lágrima salgada a escorrer-me lentamente pela bochecha, e no silêncio chamei mentalmente por ti, uma e outra vez. Não sei porquê, mas acalmei. Aos poucos voltou o calor. O coração retomou o compasso normal, as mãos já mexiam, e as sombras pareciam ondular como de costume. Apanhei os lençóis e tapei-me. Respirei fundo e dormi.


Pode ser loucura ou ilusão da mente, mas o facto é que quando voltei a pôr a cabeça na almofada senti o teu cheiro doce, e quando fechei os olhos foi o teu beijo que me devolveu a paz.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Com Pã, rumo aos Andes!

Estou sentada num comboio vulgar, talvez demasiado vazio, com um caderno apoiado nas pernas dobradas, óculos escuros postos, olhar perdido, focado na paisagem disforme. Tenho uma caneta Bic na mão, e distraidamente vou-lhe roendo a tampa, enquanto espero que a mente esteja suficientemente vazia para que as palavras surjam.
De repente, ao dar-me conta de que concentrar-me naquelas condições seria impossível, sorri. Do meu mp3 brotavam as notas puras, de timbre característico, da eterna e inconfundível flauta-de-pã. Se fechasse os olhos via, em câmara lenta, os Andes bem à minha frente, a sua harmonia plácida, a sua calma resplandecente, o seu esplendor sábio. Se os mantivesse fechados e me deixasse levar pela melodia que deslizava para os meus ouvidos podia ver bem na minha frente os rostos morenos dos ameríndios: o seu negro olhar penetrante e inteligente, o seu imponente e magro nariz adunco, o liso e preto cabelo comprido, ao vento, enfeitado com os mais variados pendentes coloridos.
Abro os olhos, na sombra das lentes que impedem a minha observação de ser percebida. À minha volta há prédios altos, uns luxuosos e pintados de fresco, outros bem antigos, rachados pelo tempo e corroídos pela humidade, entrecortando o céu nublado, de cor indefinida. Fecho os olhos e elas lá estão, as cabanas bicudas, de vários tamanhos, suas palhas e tecidos baloiçando ao vento sob um céu alaranjado que emana frescura…ouço a flauta.
De novo a minha realidade, as pessoas errantes cheias de pressa e alheias ao mundo: mulheres equilibradas em saltos finos, de maquilhagem carregada e cabelo estático, homens de fato escuro e gravata apertada, sapatos lustrosos, malas de linhas rectas, relógios no pulso. Em todos o mesmo olhar vazio, a mesma pressa de viver, o mesmo telemóvel no bolso, a mesma solidão acompanhada num caótico mundo cheio demais. Das canas de bambu chegava o som causado pela pressão do ar que as percorria: ao ritmo da natureza, leve como o próprio ar, fluido como a água, quente como fogo e próspero como a terra, o povo dos Andes dança num compasso afinado. Sobre os corpos dourados assentam roupas manufacturadas, todas iguais mas todas diferentes; nas peles a tinta colorida grava os mais diversos símbolos, cada qual com o seu significado. Dos pescoços, pulsos e tornozelos pendem adornos diversos, penas, pedras, contas… natureza talhada pelo Homem, para o Homem, à medida do Homem.
Sei que se abrir os olhos, mesmo sem desligar o mp3, posso ouvir o som estridente das buzinas, o motor dos carros, os alarmes dos aparelhos electrónicos, a voz distorcida pelas ondas que a transmitem. Mas prefiro mantê-los fechados, respirar fundo e aproveitar estes breves minutos de calma que me estão a ser proporcionados por alguém que nada mais vez que soprar para uma cana.
É esta, minha, a sociedade desenvolvida? Não será mais Homem aquele que sobrevive em harmonia com a natureza e dela usufrui que este meu, que a destrói e a aniquila em prol de metal escuro e frio?

Hoje, eu preferia dormir ao relento sob um céu estrelado, ouvindo o canto do rio e dos pássaros, olhando os contornos da montanha, pintando os meus sonhos com pegadas descalças, sentindo nos pés o áspero granulado da terra, nos seios o macio da pele trabalhada, no rosto o frio da noite, nas mãos o macio das penas…
Preferia mesmo.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Meta-vitruviana

"A perfeição atinge-se não quando nada mais há a acrescentar, mas quando nada mais há a retirar."
Antoine De Saint-Exupery


Não há nenhuma vez que, tendo-me decidido, não volte atrás. Podem ser milímetros, pode ser em pensamento, podem ser milésimos de segundo…mas a minha decisão vacila sempre, e lá se suicida de novo a autoconfiança.
Não percebo este oco dentro de mim, este vazio palpitante, esta ausência que berra, esta falta que aperta. Tenho saudades de quê, afinal? Posso ter tudo o que quero na mão, e fazer malabarismo com isso, enquanto a população mundial grita de júbilo e aplaude. Não me é suficiente. Posso ter tudo de sobra e a vida tão cheia que até o sono precisa de marcar hora na agenda se quer ser contemplado no planeamento dos meus dias. Mas não estou satisfeita. Posso sorrir e cativar 24 horas por dia, 7 dias por semana, porque vos garanto que esse esgar nada mais é que um engenho plástico que me arreganha o rosto, a meu ver, de modo aberrante e bizarro. Estarei por detrás da massa dérmica, certamente, de trombas.
Eu penso e repenso, eu meço as implicações das minhas escolhas, eu avalio situações, eu medito, na maior parte das vezes eu até opto pelo que, dos males, parece o menor ou, caso não se avizinhem obstáculos desagradáveis, pela hipótese mais prazenteira. Mas é inútil: segundo mais, segundo menos, cá dentro urra a buzina de “erro técnico” e acendem as luzes de perigo no painel de “possíveis avarias”.


Rita Mendes picked the wrong way. Rita Mendes picked the wrong way. Rita Mendes picked the wrong way.
(Again, and again…)
Longe da perfeição. Muito longe...

sábado, 24 de maio de 2008

Meteoro-psicologia


Tomei balanço na escrita: a velha e baça Parker olha-me, entusiasmada, disposta a deixar-me segurá-la firmemente entre os dedos e fazê-la vomitar tinta até que deixem de ser produzidas cargas que a revitalizem. Eu sorrio para ela e faço-lhe o favor: o facto é que o calor na barriga causado pelas palavras de apoio que, aos poucos, me vão chegando de recantos desconhecidos (e de outros quantos bastante familiares) me motivam a continuar e despertam verdadeiros sorrisos.


Faz frio lá fora. Agora não chove, mas já choveu. Também já fez sol. Na verdade, hoje já caiu pedra e também já trovejou. Vá-se lá saber o que se passa com a meteorologia mundial, obviamente o Homem é vítima, e fazer uma petição contra estas alterações climáticas incómodas e desagradáveis talvez não fosse mal pensado. É que uma pessoa veste calções e constipa-se, põe uma camisola e transpira, compra um bikini mas é forçada a usar botas! Estou para aqui toda arrepiada, mas se me tapo não tarda que o calor sufoque. Não há direito!
Comigo, a situação está homóloga à climatérica. Num período mínimo de tempo é possível encontrar uma Rita histérica, logo seguida de outra deprimida e melodramática, que por sua vez antecede em mim uma expressão totalmente nova de angústia. Depois disso, quem sabe, talvez chore de tanto rir, ou talvez amue e me tranque a sete chaves. O mais provável é, vai-não-vai, virem a dar de caras com a explosão furacão: aí berro e reclamo, esperneio e grito impropérios, deito tudo abaixo e não abro excepções. Mas isso é coisa passageira, cinco minutos e está o caso arrumado, eu já volto sorridente e renovada. (Por favor, não façam nenhum abaixo assinado para derrubar esta minha personalidade multifacetada, ia ser complicado para a minha pessoa abrigar tanto pensamento e tanto sentimento num só modo de estar!)
Fica então a esperança de que com o mês de Junho venha o verão, e no mesmo pacote o sol e a praia. Falta pouco, e o tempo voa. A noite cá dentro é bastante iluminada pelo sagrado empurraozinho da temperatura exterior; nada melhor que sentir o sol nascer, seus mornos raios ficarem cada vez mais intensos, e saber que, por mais longa que seja a madrugada, há sempre um novo amanhecer!

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Sem freio


Acabo de colocar na testa uma tabuleta, daquelas de madeira tosca, com uma mensagem a tinta vermelha, escrita à mão, levantada antes de seca, de modo que algumas letras estão a escorrer. Essa tabuleta diz em maiúsculas: CONSCIÊNCIA À VENDA.
A mensagem está errada, percebi agora. Na verdade não ponho a consciência à venda, não quero dinheiro nenhum por ela, eu ofereço-a. Dou-a, com a maior boa vontade, a quem por ela perguntar. Na verdade eu até a ponho discretamente no bolso de quem passar perto de mim, enquanto rezo para que a pessoa não dê conta, e vou fugindo a passos miudinhos. Conquanto que me veja livre desta maldição que me persegue.
É que a consciência enerva-me. A sério. Ela tem o irritante condão de ter mais força que a razão, e isso é, no mínimo, estúpido. Ela pega no sentimento, eleva-o, e isola a vontade. Ela pega naquele lado humano vulnerável, que é aquele fraco, desprezível e vai contra a lei da vida, coloca-o ao colo, embala-o…e domina os gestos!
Carpe Diem. Mas como, se a consciência não deixa? Eu devia ter vindo desprovida disso. Foi erro técnico, devolvam à fábrica e eles que consertem (ou será que a garantia acabava aos 18 anos?). Mas não faz mal, considerem então um exame de rotina. Removam a tal consciência, também podem tirar os travões, acrescentem cavalos ao motor, aumentem a cilindrada, mudem o óleo…estofo eu já tenho que baste! Mas, por favor, ponham-me a andar!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Luto!


Luto. Luto define-me, talvez, muito mais que qualquer outra palavra que alguma vez tenha utilizado no sentido de o fazer.


Luto pela minha felicidade, luto pelo que quero, tenho força e luto, luto pelos que amo e lutarei sempre, até que da minha boca saia o último sopro, pelos meus princípios e ideais, pelo que sei que está correcto. Luto pela verdade. Luto pelo amor. Luto por acreditar. De elmo e espada aqui estou, e luto de cabeça erguida.


E luto é o resto de mim. Luto por todas as perdas. Luto por cada falha. Luto pelos momentos perdidos, luto pelos erros cometidos, luto pela dor que nos outros causei e por aquela que alguns deferiram em mim. O mais negro luto. Luto hostil, vazio, sombrio, oco, triste, profundo. Luto doloroso. Mas luto.


Que mais posso afirmar ser, então, senão alguém que lutará sempre para enterrar o luto do seu coração?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Quando amanhece


Um estímulo é suficiente para desencadear a reacção suspensa no tempo e no espaço, mesmo quando pensamos que o que já foi passado está. É hora de ponta no metro, o sobrelotado e caótico tumulto já tão habitual que quase não dou por ele, numa segunda-feira comum, arrastada e sonolenta como as demais.


Mas meia dúzia de acordes melódicos reproduzidos pelo fiel Ipod para os auscultadores, e destes para mim, bastaram para que de um único golpe a dor atacasse impiedosa, sem me dar azo a defesa. Procurei, inutilmente, esconder as lágrimas que me enchiam os olhos por detrás de óculos escuros, mas poucos foram os segundos passados até que o dilúvio natural embaciasse as lentes de tal modo que, de tão turva, a visão se tornou impossível. Talvez não devesse ter dormido...a inconsciência torpe da ressaca, do cansaço, do peso das pálpebras, o fulgor da vitória no negócio que é a bola e a leveza incorpórea que o álcool proporciona sempre serviram para me deixar em transe hipnótico, caos orbital. Agora, não tenho outro remédio senão aceitar a sobriedade.

Incomoda-me a gente; não por olhar para mim, na verdade poucos se dignam a fazê-lo, mas simplesmente por existir, por estar ali e por ter acesso à minha fraqueza sem que eu assim permita. Mas esse incómodo nada mais é que um pequeno comichão discreto quando comparado com a mágoa, que alastrava a cada lágrima e parecia disposta a tomar-me de todo.
Tive medo e hesitei. Não quis sair do metro, mecânico paraíso cinzento de aço, acolhedor retiro para quem, na obrigação de estar entre os outros, se queira sentir isolado. Faltou-me coragem para enfrentar aqueles que, mais que não fosse por rotina, iriam notar o meu comportamento e, mais que não fosse por curiosidade, iam ser inoportunos e inconvenientes ao fazerem perguntas sem a menor probabilidade de receberem resposta verdadeira. Faltou-me coragem para expor, de cabeça erguida, a vermelhidão dos olhos, que ardem e não mentem, mesmo quando todo o resto do meu ser transparece naturalmente as mais diversas ilusões premeditadas.


Arrastei-me em marcha fúnebre, cada passo mais lento e pesado que o anterior, até onde o confronto directo era inevitável; senti o tormento doloroso das correntes a arrastar no chão e, tal qual ré declarada culpada por confissão, subi as escadas (que, apesar de serem apenas do edifício, bem podiam ser do purgatório), abstraída do cenário envolvente. Não tinha o coração nas mãos: infelizmente para mim, ele estava bem distante daquele local, a salvo daquela vergonha mas preso a um tormento bem maior, sem hora marcada para julgamento final.


“Tudo passa com o tempo”, ouvi alguém dizer, certamente com a melhor intenção. O problema reside noutro hemisfério: é que existir uma solução é diferente de a encontrar, e o facto de sabermos que o relógio não pára não atenua a dor do momento nem consola a memória. A quem sente e sabe mostrar que o faz, não peço palavras: quis o destino que delas tivesse eu o dom, às vezes até demasiado explícito. Assim, embora na sombra deste diário disfarçado, agradeço os olhares de verdadeira preocupação, os sorrisos de imensurável ternura e os abraços de força dos poucos que, sensatos, me entenderam e aceitaram. Todos os outros, repúdio e desprezo: para mim não são mais que matéria em movimento, forma errónea e pouco criativa de ocupar espaço, opacos obstáculos ao esplendor do horizonte.
Agora, teimosa, de coluna torta e pernas dobradas, refugio-me no pensamento que não consigo afastar. Roo as unhas, ciente de que me vou arrepender; cerro os olhos com força na tentativa falhada de atenuar as dores de cabeça. A memória aponta o dedo, e a razão faz o seu papel. Devia ter pensado que o Tim, antes de dizer “quero-te tanto”, referiu nunca ter dado um passo que fosse o correcto, nunca ter feito nada que batesse certo. Ou talvez apenas precise de me acalmar…afinal, neste circo eu sou uma das feras.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Raquel


“Tu tens mesmo o dom da palavra. Tens um dom que te permite sonhar e fazeres os outros sonharem.” (Piu, Raquel Leite)

É nesta altura que o coração aquece, os olhos brilham e o sorriso nasce. E, sem querer, é neste momento que do fundo das costas, com um suave arrepio cortante, nasce um par de asas longas e delicadas. O seu semblante é cristalino e o seu esplendor ofusca, recortado à luz do sol. A sua primeira tarefa será levar-me a voar até ti, para que te abrace com força e te diga que te adoro assim, exactamente como és.
Um amigo é assim. É alguém que não tem presença física contínua na nossa vida, não porque não queira mas porque o tempo e o espaço não permitem, mas que arranja sempre modo de demonstrar que, algures no seu coração e na sua cabeça, nós temos um lugar especial. É alguém que abdica de si para saber de nós. Um amigo conhece-nos como somos, não só o lado forte, feliz e brilhante, mas também o fraco, cinzento e sombrio, mais aquele outro vermelho, impulsivo, alucinado. E gosta de nós assim: não nos pede para mudar, apenas para que, sem amarras nem medos, nos demos a conhecer e deixemos acarinhar.
E, assim, não me condenas, perdoas-me. Não me criticas, corriges-me. Não me enfrentas, completas-me.
Quero que saibas que o meu orgulho em ti é imenso. Que te adoro, e que esse sentimento cresce cada vez mais, alheio a toda e qualquer condição adversa. E sabes que aí, nesses espaços vazios entre os teus dedos, vais poder sempre encontrar os meus.

Obrigada.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

As minhas 7 maravilhas

(Para que conste, li o post da Ameixa, achei piada à ideia e resolvi dar-lhe continuidade. Boa miúda, parabéns!)

Ficam então as minhas 7 maravilhas:

1. Felicidade. A minha e a dos que me rodeiam. Sentir-me preenchida, sorrir e ver esse gesto retribuído, ter forças e transmiti-las.
2. Todos os que amo. Os meus amigos e família. Tanto aquela meia dúzia de pessoas que eu tenho como absolutamente prioritária como todos os outros que, às vezes sem que eu me dê conta, se preocupam comigo e me ajudam.
3. A entrega completa, corpo e alma, ao que dita o desejo. Viver o momento sem racionalizar, e sentir, simplesmente sentir. Chamem-lhe lascívia, luxúria, loucura, chamem-lhe o que quiserem. É o mais puro sentimento humano, o mais natural e o mais intenso.
4. A praia das Avencas. Eu gosto de praia, mas não há nenhuma como aquela. Costuma dizer-se que todos temos aquele lugar especial. Nas Avencas vivi os melhores e os piores momentos, nas Avencas lavo a consciência e renasço.
5. Água. Seja mar, rio, piscina, jacuzzi, lago, catarata, banheira ou duche.
6. Fruta. Eu adoro fruta. Abacaxi, cerejas, papaia, morangos, mirtilos, melancia, laranja, banana, kiwi, amora, coco, framboesa, ameixas, figos (amo!), pêssego… sem excluir os batidos, os gratinados, as morangoskas…
7. The last but not the least… todo o tipo de arte. Eu deliro com expressão artistica, seja ela literatura, pintura, escultura, arquitectura, música, teatro…

Eu teria, se pudesse continuar, mais algumas maravilhas! O chocolate, a mitologia, as viagens… mas é preciso saber escolher, e estas são, sem dúvida, as sete magníficas!

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Renascer ao sol

(O sol voltou para Ela, e aqueceu-me a mim)

Hoje, pela primeira vez de há muito tempo para cá, tive o prazer de chegar a casa exausta, olhar no espelho e ver a Rita Mendes. Sorri. Sorri, como já não me lembrava de ser capaz.
Os dias arrastaram-se no calendário, um por um. Gemeram de agonia, gritaram de dor. Página por página, arranquei cada gélido mês terminado, após suportar, vá-se saber como, a longa tortura. Nos espelhos que me reflectiam aparecia uma imagem ténue, desfocada: uma miúda pálida, com olheiras, cansada, triste, desmotivada. Havia por vezes um brilho nos olhos, chegou a haver um esgar como que de alegria nos lábios. Mas não. Ilusão de óptica. Cá dentro, e durante todo este tempo, a temperatura foi igual à do exterior. Choveu, fez frio, trovejou. Vieram rajadas de vento arrasadoras, até caiu pedra. Tudo negro, cinzento, mórbido. A memória vinha, sorrateira, mas não chegava, porque consigo não trazia raios de sol, ondas do mar, pessoas de verdade.
Hoje, pela primeira vez, senti-me despertar desta hibernação rígida. Senti os meus membros desentorpecer, um por um. Senti o calor na pele, aquele que é parte dela. Senti o choque perfeito do Indomável Azul no meu corpo. Senti o doce prazer de ver os segundos deslizarem, alegres, sem me cortarem a alma. E, claro, senti a confortante e doce presença dos suspeitos do costume. Aqueles que, como eu, fazem daquele o seu ambiente natural, a sua casa mais genuína, e que só lá se revelam, e que para lá regressam mal o horizonte liberte o sol. Fui feliz de novo.
E cá está a Rita, aquela que só conhece quem a vê no seu ambiente natural, aquela que sorri à própria brisa, que vê o mar com olhos ávidos de curiosidade e fiéis por respeito. A Rita, de pele escurecida pelo sol, que exala harmonia. Agora sim, o brilho no olhar, a verdade no sorriso, a naturalidade nos gestos. Funciono a bateria solar!
Chega de palavras. Chega de congelar emoções, sentimentos. Chega de rotina arrepiante, de vidas por obrigação. Agora, quero prazer. Quero entregar, de braços abertos e consciência lavada, corpo e alma na mão do verão. Quero, uma vez mais, sentir o gosto de ser eu, e viver. Finalmente viver.

À praia das Avencas, que será sempre aquele único lugar capaz de me ceder o sopro da vida. Ao João, sim gajo, por teres estado comigo hoje (me ouvires rir, dizer frases estúpidas sem pensar), e só eu sei de quanto isso valeu. À Xana, porque nem precisei de te convidar, porque és tão mas tão alma gémea que soubeste aparecer (e estar lá para mim, para me ouvir gritar liberdade, exalar essência, subir).

From now on… hey guys, I’m back! Did you miss me? ;)


SUMMER TIME!

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Medo


Pára. Pára já e escuta…não os ouves? Não os sentes à tua volta, a controlarem o teu respirar, a manipularem o bater do teu coração na palma das suas mãos suadas? Rompe de uma vez a ordem do quotidiano mecânico e dá vida à humanidade, se ainda a tens!


Fecha os olhos. Já viste? Se tens medo de ser livre, então estás a um passo de ter orgulho em ser escravo. Ou será que já o és? Quando foi a última vez que sentiste na boca o doce paladar de estares a fazer o que realmente desejas?


O medo é uma doença, uma doença grave. Ele apodera-se de ti, de cada um de nós, consome-nos forças, domina-nos movimentos. O medo prende cada um dos traços do nosso carácter. Mais tarde ou mais cedo és um Homem petrificado, mais uma carcaça oca e poeirenta, mas que respira, que vive. O medo é contagioso. Um olhar assustado perturba mais que litros de sangue derramado.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Lobos enjaulados


Dou comigo a sorrir frente a algumas situações.
“Há lobos enjaulados nas máscaras que somos”, pode ler-se na parede na casa de banho feminina do 2º andar da ESCS.
Não faço a menor ideia de quem isto escreveu. Tão pouco sei quando o fez, ou porque razão. Mas não deixa de ser estranho pensar que uma das frases mais sensatas e tocantes que já li esteja rabiscada num sanitário público, local de “entra e sai” de todo o tipo de (teoricamente) miúdas, talvez mulheres. Local, também, de “entra e sai” de outro tipo de substâncias, igualmente comuns mas menos banalizadas. No fim de contas encontro mais conteúdo num cubículo destinado a colher necessidades básicas (e outras mais secundárias mas de menor relevo) do que na grande maioria das restantes salas de estudo desse edifício, e de muitos outros a ele semelhantes.
Seremos todos poetas de casa de banho? Será que só em locais como este, em que a nossa intimidade fica preservada por três paredes, um chão, uma porta e (nem sempre) um tecto, será que só quando nos sentimos a sós connosco somos capazes de revelar essa máscara que já nem temos, mas somos?
E o lobo enjaulado, fica onde? No brilho líquido do olhar cauteloso? Todos sentimos a presença incómoda dessa alcateia acorrentada, quando na multidão estamos. Todos ouvimos o eco do seu uivo na raiva das insinuações proferidas, na avidez das traições consumadas, no medonho eclodir da violência. E será só nas minhas costas que jazem, imponentes, as cicatrizes dos fundos golpes feitos pelas suas garras afiadas?
A verdade é que há lobos enjaulados, sim. Lobos cada vez mais selvagens. Cada vez mais desesperados, mais ansiosos por rebentarem as correntes que os condicionam, cada vez mais animais. E a verdade, também, é que continuamos a ser máscaras. Máscaras camaleão, amorfas. E, se tu que me lês me entendes, sabes que os lobos não aguentarão muito mais esta biosíntese fantoche que as máscaras impõem.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Judas cá dentro


Cega estava a razão quando deu asas ao coração. Cego fica o Homem de cada vez que, de ânimo leve, lhe dá a mão como a um fiel melhor amigo e o deixa guiá-lo para a loucura. Cega estive eu tanto tempo, e só eu sei o esforço que faço para rabiscar meia dúzia de palavras neste fragmento de lucidez que não sei quanto tempo durará, até que a luz volte a apagar, e fantoche me torne de novo.
Um olhar cruzado e lá vai toda a racionalidade construída com esforço. Uma só palavra e desmorona o palácio de cristal formado por todas as premissas, todos os argumentos, todas as verdades. Um toque apenas e rui também a decisão tomada, rui o sentido de responsabilidade e a consciência. De um instante para o outro reina a ilusão e o encantamento, desvanecem prioridades e perdem-se oportunidades.
E flutua-se. Voa-se, divaga-se, sonha-se. Ganha asas corpo e espírito; baila o pensamento, gracioso, por entre memórias de encontros furtivos e desejos de beijos. E cintila a noite, eterna companheira do amor, disposta a ceder estrelas cadentes, luares e sombras…oferece a ilusão, a negra escuridão acolhedora, e em troca consome esperanças, sonhos, inocência, calor.
Até que o olhar se afasta, a palavra morre na boca de quem a profere e o gesto tarda demais. De repente o tempo passa e a solidão toma posse; agora assombra o medo, a dor, a mágoa. Agora, caídos das nuvens, não há anjo que seque a lágrima que escorre do olhar vazio. A treva surge trocista, voraz. Alegria perdida, resta o corpo oco e o tal coração, traidor sem vergonha, que ousa continuar a bater, imune ao seu próprio golpe.
Desta vez a noite vem destapada. Olha-nos e ri-se, altiva, vitoriosa. Lança-nos frio, sombra e escuridão, e pergunta com voz doce “Onde anda essa força protectora agora?”. A vergonha, encolhida, engole em seco. A alma sangra. A memória grita de angústia, a razão acusa-nos, o pensamento chora…e o coração bate.
Mas, sem sabermos bem como, lá arranjamos força para nos levantarmos. O sol nasce timidamente, lança meio que a medo um raio morno para nos aquecer a pele, e a ambição contribui com um impulso arrojado. Os olhos já secaram; a ferida não cicatrizou, mas também já não sangra. Olhando o horizonte engolimos em seco, e atiramo-nos de novo à corrente da vida, puxamos pela razão e ela vem. E, se tentarmos, no silêncio do pensamento ouvimos o coração bater no peito.
E, agora, ainda consciente, repudio-me pela fraqueza. Pela falta de firmeza no que toca ao sentimento. Mas sei que ele cá está, intocável, a bater no seu compasso dançado. E à esquina estás tu, pronto a atormentar-me eternidade fora, num gesto que é nosso…
Eu sei de cor…coração Judas, que me trais com beijos…

domingo, 30 de março de 2008

O eterno vaivém de quem deveria ficar



Vi-te ir embora do mesmo jeito que chegaste: demasiado depressa. E, exactamente como no princípio, não sei o que senti ao aperceber-me disso.
Eras mais um entre os demais. Mais um naquela massa de corpos errantes, que eram literalmente demais. E de súbito o comportamento alterou-se e algo faiscou cá dentro. Num dia apareceste com um sorriso no rosto e olhar meigo, e foi a persistência desses dois elementos, associados a uma ternura dócil, que distorceram a minha rígida negação até que ela se tornasse numa saudável dependência. E bastava-me saber que estavas lá a qualquer hora e que me ias receber para que o dia corresse fluido e o meu respirar fosse leve. Dei por mim acostumada a essa tua presença aconchegante que me reconfortava sempre e que não me traia, simplesmente porque não tinha como nem porquê. No fundo, não me eras nada, nem eu a ti. Mas, e sendo ambos livres para traçar nosso rumo, não precisávamos de rearranjo para conjugar destinos. Corríamos lado a lado porque a vida permitia e a vontade ditava.
Vem o tempo e tudo distorce. Os demais que já referi parecem ter uma vida tão folgada que lhes permite interferir na nossa. E o nosso destino dá voltas sem sentido, estremece, encurva e puxa com força indomável em sentido contrário ao da paz interior. Agora os nossos passos já não podem ser dados lado a lado, não porque a vontade não dite mas porque é a matéria e o poder quem tem mão de ferro. Contra eles de que vale o coração?
Não é do canto do olho que te vejo partir, mas de um qualquer recanto da alma, que cheira a bafio e está cheio de pó. O desejo não grita de raiva, porque a dor é forte demais e o aperta e cala, senão certamente que o faria. Não choro, porque, se nada tinha, claramente nada perdi. Mas também não sou capaz de sorrir, nem de falar, porque a garganta secou e o cérebro parou momentaneamente de funcionar.
Não quero palavras, nem falsas ajudas. Talvez queira um ombro, se for o certo. Afinal ainda respiro, e desta vez deixei a porta aberta: errar uma vez é admissível e até saudável, mas duas já seria burrice. Além do mais, se ela para mais nada servir, sempre posso pôr a cabeça de fora e sentir a brisa fresca na cara.

Agora o que quero, sem dúvida, é o silêncio e o vazio, para que neles me possa afundar até que o pensamento domine a mágoa; até que o tempo, esse eterno agente duplo e por vezes infiltrado, leve do meu pensamento a saudade, cicatrize a ferida no meu coração e permita que a memória feliz consolide.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Gota a gota


Água. Água por todo o lado. Ouço-a, impiedosa, a bater forte na vidraça, assume a forma de chuva, é indiferente à chegada da Primavera, está decidida a ficar e a demonstrar sua força. Sinto-a, ainda quente, a escorrer dos meus olhos, que ardem, a morrer lágrima por lágrima na minha boca, deixando um vago sabor a sal, que me lembra o mar. E por mar…
Arrasto-me, pausadamente, até ao lavatório. Nem olho o espelho, não quero passar pela tortura de ver o meu próprio reflexo e sentir a rendição da minha alma afixada nos meus olhos. Abro a torneira, deixo correr o líquido pelas minhas mãos frias e pálidas. Mais água… pois então água que seja.
Arranco do corpo a roupa amarrotada, atiro-a para o chão, peça por peça. Entro no duche, fecho a cortina por força do hábito e abro a torneira da água quente no máximo. Em pé, sinto o fluxo quase cortante a bater-me com força na cara, a despertar-me os sentidos, ouço o seu correr crepitante. As gotas escorrem-me para a boca entreaberta, deslizam-me pelas costas… um arrepio frio percorre-me a espinha, contrasta com a atmosfera quente daquele espaço apertado. Agora sou só eu, envolta num mar líquido de vapor quente, sou eu que me entrego à água que grita por mim, sou eu que já grito com ela.
De olhos fechados, decidida a ceder por completo ao prazer da sensação, deixei escorrer água e espuma pelo corpo nu. Senti cada centímetro que as mãos tacteavam, mãos que não eram minhas. Entrego-me. Senti lábios molhados no meu pescoço arrepiado, que estiquei para trás, que cedi. Entrego-me. Húmido, quente, molhado, suave, definido, limpo, triplo, dual, uno.
Abri os olhos, fechei a torneira, abri a cortina. Molhei a tijoleira com os pés por limpar, só depois puxei com força a toalha turca, que embrulhei em meu redor, distraidamente. o espelho, agora totalmente embaciado, mostrava uma imagem desfocada, impercisa, tremida. Olhei pela janela, e já não chovia. Eu também já não chorava. Todas as torneiras estão, por agora, fechadas.

terça-feira, 25 de março de 2008

Janela do olhar

Estou sentada no meu quarto, na minha própria cama dura, costas na parede gelada e olhar preso no horizonte cinzento, recortado por entre paredes sujas de humidade e muros repletos de musgo. Os meus pés gelam dentro das meias cujo propósito é aquecer, o meu tremer contrasta com a respiração quente, que abafo por entre os braços cruzados.
Engraçado como a vida parece congelar quando paro para reflectir, e correr normal e indiferente quando ponho alguma das minhas máscaras. Durante semanas a fio procurei desesperadamente fugir de mim. Recorri a todo o tipo de ocupações para me abstrair, corri contra o tempo para que o cansaço do meu corpo fosse mais forte que a dor da minha alma, para que o mundo me levasse na sua corrente maciça e me impedisse de cair em mim. E consegui.
Nem sei quantos dias passaram sem que realmente usufruísse deles. O quotidiano girou à minha volta num compasso de sons díspares, cores tremidas, sensações deturpadas e sentidos entorpecidos. Quando chegava a noite o cansaço era tanto que a consciência apagava mal a cabeça batia na almofada. Vivi como fantoche, sorriso nos lábios e olhos turvos, palavras ocas em frases vazias, humanidade gerida em função do rendimento. Escondi a dor por detrás de ovos de chocolate e pregadeiras de feltro colorido. Apaguei a mágoa com recurso a música talvez alta demais. Calei o grito que crescia na garganta correndo quilómetros. Ainda assim, cheguei a chorar. Nem a isso me permiti. Mortifiquei as lágrimas em lenços de papel áspero, mas não consegui disfarçar a vermelhidão dos olhos. No entanto rodeei as perguntas que pediam resposta sincera recorrendo a substitutos baratos e credíveis. Como sempre, deixei-me enterrar um pouco mais neste buraco que eu própria escavo.
Agora, tal qual estou, calma, lúcida, olhando distraidamente pela janela, fragmento-me em constatações. O facto de ser como sou condena-me a esta solidão acompanhada e, por mais que a tudo me entregue, apenas uma coisa será capaz de preencher este vazio cá dentro, que me consome o calor.
Roo a tampa da caneta, desvio o pensamento e finto memórias felizes. Lá fora não há movimento, nem barulho. Em meu redor, rostos familiares fitam-me acusatórios, consigo sentir nas suas expressões estáticas um recriminar fundamentado. Não preciso de palavras. Eu sei quem sou, como sou.

domingo, 9 de março de 2008

Ampulheta


O meu passado usa lentes. Entretanto, sou eu quem vive assente numa imagem do real que reflecte, que refracta, que é difusa, desfocada, às vezes escura, outras de um brilho tão ofuscante que encandeia. O meu passado usa lentes, e eu não sei até onde é verídica a noção do que vivi, não consigo definir a ténue linha que separa o raio que chegou e aquele que na verdade interpretei e assumi.
Hoje, o meu presente é cego: guia-se por palpação num terreno que desconhece, tendo por princípio bases que oscilam como areias movediças, que ora sugam lentamente mas num compasso afinado, ora parecem inócuas e até apetecíveis. Entretanto eu perco-me, divago, desespero. O tempo escorre pela vidraça; observo, melancólica, as marcas que cada gota deixou à sua passagem. Suspiro, como eu suspiro. Do fundo de mim vem uma força que dispensa dimensões, que deixa o tempo para quem insiste em usar relógio, que se ri da relatividade absurda do espaço. As lentes do meu passado foram embaciadas pelo ar quente que expirei, hoje olho-as, penso nelas e, deixando-me guiar pelos sentidos, faço nelas desenhos irregulares com o dedo. Mais ar quente. A lente cada vez mais baça e eu cada vez mais perdida.
No fundo, não sei bem do que reclamo. Se o meu passado usa lentes, o da humanidade cedo acusou diagnóstico de cegueira. À minha volta vagueiam, errantes, almas tremidas que sofrem de miopia, cataratas, estrabismo, conjuntivite. De quando em vez lá surge quem bem veja, ou tenha recorrido aos óculos. A maioria simplesmente ignora a doença que os consome e degrada.
Não sei que luz é esta que hoje chega, que amanhã iluminará, e que já ontem cá esteve. Mas, acima de tudo o resto, essa luz está cá, e sou eu quem decide se o seu propósito é iluminar, guiar ou simplesmente estar presente, esperando que eu dela necessite.
E agora cá esta ela. Essa ampulheta de lentes que me olha e sorri, que tem dentro uma massa heterogénea hipnotizante indefinível. Afinal só tinha visto a parte de baixo. O meu futuro, felizmente, também usa lentes!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Lisboémia, te venero


Porque não me contento em ter o que vejo, quero aquilo cujo acesso seja restrito. Quero uma obsessão que puxe por mim, que me obrigue a lutar, que me prenda, que me amarre, que me leve à loucura incomensurável e me faça desesperar.
Amo o gosto doce e breve do momento que foge mas hipnotiza, venero o gesto que procuro durante horas e só surge quando a minha força vacila, jogo com o envolvente monopólio das sombras dançantes, com o toque macio do veludo morno, vagueio errante por entre brumas que escondem corpos amorfos, deixo-me envolver pelo aroma inigualável de essência indecifrável e mergulho de cabeça em labirintos cuja planta se assemelha à minha Lisboa.
Diz que são todas iguais, as cidades. Não há alma como a dela, não há fado como o seu, as pedras da calçada daqueles trilhos que murmuram, olhos no Tejo que corre lento e narra para quem o quer ouvir; o meu sangue corre no toque de cada guitarra vibrante, no travo de cada gole de tinto, escorre para fora de uma clepsidra que já transborda… Esta Lisboa que dorme enquanto os seus eléctricos passam, vazios de quem os entenda, cheios de quem os empate… Lisboa não é do mundo, porque o mundo jamais a perceberá, mas não há dúvida de que o mundo é seu, porque só o suspiro da sua saudade move gerações, porque ela vence o tempo.
A minha voz é a do fado, a minha altura a do castelo, e se me queres entender não procures explicar-me… devolve-me a doçura dos colos pálidos a descoberto, traz-me de novo o cabelo revolto que, solto, tapa um pescoço que implora sentir o teu beijo, o teu respirar… A boca cala segredos que chocariam o mundo, mas que importa…
E com isto perdi na meada o fio que procurei seguir… também, o que interessa isso, quem me lê sabe que estas páginas soltas não pedem numeração nem têm ordem de leitura… Diz que amanhã reina Valentim… não creio. Mas se falamos de amor, a palavra sacra que desliza nas minhas mãos por entre letras que a dissimulam mas estremece na minha boca só de pensar no quão ousado seria pronunciá-la em vão, se falamos de amor, então que venha um Casanova, um Cagliostro. Que reine então a supra alquimia, o charme irresistível do desejo avassalador; há muito Romeu no mundo, e dessa história já eu conheço o fim.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ermo meu


Passam correntes fortes e avassaladoras, marés turbulentas e incontroláveis, ventos frios e violentos e tempestades de luz, mas para me tirar desta luta tem de vir algo bem maior, venha, se ousar, a morte ela mesma, com todo o seu esplendor glorioso (ou excesso de confiança) de quem não conhece limites, ela que me olhe bem dentro dos olhos e veremos então quem vence…até lá subirei certamente aos céus, e há a possibilidade de que volte a cair no mais profundo abismo, mas serei eu quem manda, serei eu a cerrar as pálpebras e concentrar-me na minha força até ver a luz… Até lá reino eu!
Bate a carvão, este que jaz em meu peito quente, fumega, aquece, arde…combustível fóssil, podem muitos dizer. Pois é isso mesmo, é combustível, é fonte de energia, é força, é potência, é motor! Se é fóssil? Também o é, sim, com orgulho. Já não se fazem destes. Este que pulsa cá dentro sem pedir autorização nem dar justificações é real no presente e imagem viva do passado, é pedra dura que se deixa furar por água mole se ela souber onde bater, é lenda, é mito…é mistério explicável nas profundezas de si mesmo. É único, e é meu.
Ama-me, mas não peças o que respira por sístoles e diástoles, não exijas para ti o que jamais te poderá pertencer. Não terás a chave da chama da minha alma, porque nem saberias onde a procurar, e eu jamais a cederia. Faz-me amar-te, e terás o meu pensamento. Conquista-me, hipnotiza-me, enlouquece-me, dar-te-ei acesso aos recantos mais remotos da minha mente, se souberes interpretar os enigmas deste labirinto épico. Mas nunca, jamais, sequer ouses pensar em apoderar-te do meu coração, pois é certo que se o fizeres me matarás...se antes eu não o fizer a ti.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Prisioneira em mim


Às vezes pergunto-me porque é que a minha cabeça parece um novelo tão emaranhado em si mesmo e repleto de nós que me impede de ver a vida com clareza e objectividade, que me sujeita a toda a hora a um bombardeamento incansável de ideias e pensamentos que não pedi e que tanto me perturbam, que me atira sem dó nem piedade para um abismo que tem um novo fundo de cada vez que nele caio, que me consome lentamente de dentro para fora e que me faz perder a fé em tudo.
Já não sei quem sou, o que quero, pelo que luto. Já nem sequer sei se vale a pena lutar. Esta Terra que dizem ter gente a mais assemelha-se a um planeta fantasma no qual me vejo sozinha, densa, complexa, triste, rodeada no entanto de todo o tipo de bonecos animados que parecem viver, de pálidos espectros do que seria um povo, de todo e qualquer apetrecho mecânico, inventado e inútil, que cobre a pureza do natural e o transforma num labirinto metálico ensurdecedor. Há à minha volta um universo criado com base nos caprichos de mentes anónimas que cobre a realidade que nunca verei. Não sei de que cor é a terra por baixo na casa onde vivo, não sei qual a textura do solo sob a cama onde durmo, não sei que cor tinha o céu antes de tanta substância se ter acumulado no ar… no fundo só tenho acesso ao monopólio criado por antepassados impossíveis de imaginar, a camadas e camadas de uma evolução que não sei até que ponto pode ser considerada positiva.
Algo no meu ser é incompatível com estas amarras que me prendem, o meu éter, cego, urra de dor e raiva por estar preso a este corpo, porque este, com todas as suas limitações inatas impostas por uma sociedade fantoche, é uma cápsula corrosiva para a luz que teima em soltar-se e ser livre. Filosofia ingrata, esta; como dói pensar, como é dilacerante este raio que me fulmina de cada vez que dou asas ao meu espírito, como sou brutalmente esmagada por essa águia de garras afiadas que me toma como potencial inimigo antes de ouvir o que tenho a dizer. A racionalidade é o obstáculo que se prostrou no meu caminho e teima em não sair de lá.
A minha essência é grande demais, não cabe na forma humana que me foi dada sem ao mesmo tempo conseguir libertar-se dela. A luta travada em mim é feia e mata-me pouco a pouco, não há como fugir, não estou apta a negá-la, simplesmente toda eu sou contradições e controvérsias, toda eu sou feita para viver num mundo que não existe, o meu molde não encaixa num planeta que é hoje uma gigante implantação de silicone, sem que ninguém dê conta. Sou prisioneira em mim, e, se ter de viver adoptando uma máscara para cada situação já não era castigo suficiente, vem de dentro de mim a força que me impele cada vez com mais intensidade a explodir num milhão de estrelas e ser, de uma vez, o que me diz o instinto.
A minha cabeça lateja de tanto pensamento sobreposto, as veias dilatam, o cérebro entrou em efervescência, a visão, turva, pede a escuridão externa e interna, uma paz final, talvez merecida. O meu coração bate num compasso irregular, indeciso entre o pêndulo constante, a onda veloz ou a pluma sem densidade. Ambos me pedem tréguas, ambos me exigem uma força e coragem que não sei onde procurar, já nenhum aguenta esta prisão que assume sorrisos e lágrimas, amigos que nunca foram e rotinas de morgue.
Choro numa tentativa de alívio, alio o isolamento físico ao psíquico que sempre vivi e procuro acalmar…mas não dá. A tensão cá dentro cresce e ameaça rebentar em meu peito. Quem dera não me ter entregue a esta humanidade que é cada centímetro de mim, quem dera nunca ter amado e não estar agora nesta posição que não me deixa desistir, não por mim, mas pelos que de mim precisam…pois agora não haveria amarra que contivesse o meu espírito inquieto. Alguém se enganou quando deu vida à minha essência neste contexto, eu enganei-me quando ousei criar laços de amor… terei força para criar um mundo novo?

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Coração de aço


Já não há quem sorria na rua. Parece incrível, mas de facto o universo cinzento maquinal que nos rodeia, com o seu urro de besta ensurdecedor reproduzido nos mais diversos objectos e o seu semblante frio de ferro duro e aço inoxidável, conseguiu consumir a alma da gente. Já não há risos espontâneos, olhares expressivos e gestos amáveis. Agora há relógios, fumo e alcatrão, há botões e massas compactas num transe nebuloso. A humanidade morreu.
Já não sei o que é feito do verde, o som do mar é remoto, o céu que me cobre a noite perdeu há muito as estrelas e tenho na lista telefónica mais números que amigos. Já não é outra mão que agarra a minha, é provavelmente uma mala com objectos pessoais, mesmo que eles nada signifiquem, ou um qualquer prolongamento mecânico da mesma (sendo este um telemóvel, um teclado de computador, um leitor de mp3 ou uma batedeira). Encontro mais frequentemente os meus lábios em busca de um frio e baço copo de água ou qualquer outro elemento líquido que seque minha boca do que procurando relembrar o calor do toque provocado pelos teus.
Tenho nojo desde tufão tecnológico alimentado já não por electricidade ou baterias, mas por corações que batem sempre ao mesmo compasso, por almas desertas de sonhos e desejos, por corpos cientificamente vivos mas mortos para a vida.
Procuro conforto na tinta espessa que escorre da pena quando a seguro, quente, entre os dedos, passo a mão pela textura irregular da folha de papel e o seu cheiro característico faz brotar lágrimas em meus olhos. Afinal ainda há cá dentro o inexplicável, mais que não seja a saudade e a memória. Afinal, mesmo que fraca, ainda desejo veementemente resistir e lutar. Não quero mais explicações metodológicas, estou farta de ver a vida representada em números, não quero saber dos átomos que constituem as moléculas do ar que respiro. Será que ninguém percebe que a beleza da vida está no inexplicável, na carícia do acaso, no doce toque do inesperado que causa arrepio?
Agora, pensado bem, talvez faça alguma coisa. Vou correr para a janela estreita, abri-la de par em par e gritar a plenos pulmões “Há aí humanidade?”. Mesmo antes de o fazer já ouço o eco da minha voz…haverá alguém na rua?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mar eterno


A brisa moldava-me o cabelo e invadia-me a alma enquanto calmamente caminhava pela areia seca. Descalça, conseguia sentir a textura fria dos seus finos grãos entre os dedos, marcando a minha breve passagem.
E então a mudança. A areia era agora molhada, mais dura e ainda mais fria. Sentia a humidade ao pôr o pé no chão, mas não hesitava, não tinha porque o fazer. À minha frente, o ruído do mar era ensurdecedor, aquele estrondoso e fascinante espectáculo prendia-me, estava de braço dado com as ondas, que, poderosas, rugiam e estalavam. A água, gelada, molhada, congelava-me os pés e os tornozelos, podia sentir a espuma branca dissolver-se na minha pele.
Como uma só alma, eu vivia e era a onda. Desinibida, abri a boca e rugi violentamente, libertei toda a fúria, corri desalmadamente e por fim morri na areia, dissolvendo-me e trespassando os seus finos grãos até finalmente desaparecer. Mas o meu impulso gerou outras ondas, tão fortes como eu, e assim de facto nunca morro, nunca acabo, nunca termino, apenas renasço, a mesma alma noutra matéria, o mesmo espírito indomável a admitir uma nova forma, a mesma frescura e sabedoria a percorrer o mundo inteiro aberta ao desconhecido, embalada pelo som harmónico do relógio da vida. Por vezes sorrio, amanso, relaxo, brilho e deixo que me encontrem, que me testem, que me usem. Outras expludo, torno-me uma fera feroz e ameaçadora, protejo-me fechando-me em mim mesma e semeio o pânico. Mas a minha essência, o meu ser, o meu coração, esse abriga-se na escuridão das profundezas desconhecidas e inexploradas, às quais nenhum Homem jamais chegará.
O brilho nos meus olhos é o mesmo que o da tua superfície, as ondas do meu cabelo são os raios de sol que te ilumina, e os meus lábios o túmulo sagrado dos teus segredos mortíferos e inatingíveis.
Amo-te, respeito-te, sinto-te, compreendo-te, perco-te e somos um. Neste momento, sei qual é o meu lugar, sei onde pertenço, sei porque me moldo e sei porque sou inesperada. Sou água. Sou corrente, onda, mar, túnel, sou gota, partícula, molécula, sou toda, completa, inteira, sou enigmática e mortífera, sou paixão e ódio. Sou mar com todas as forças que o meu corpo tem. Sou água!
Abri os olhos. Estava suada, ansiosa, ofegante. Olhei-te, admirei-te, senti-te. Despi-me. Rasguei de um puxão o vestido de linho branco, solto e leve que me cobria e, distante, atirei-o para longe. Sem medo corri para o mar, solta e deliberadamente, mergulhei espontânea em ti só porque sim, só mesmo porque te queria integrar, sentir teu esplendor. A temperatura gélida arrepiou-me o espírito mas deu-me vida e movimento, abri os olhos e acelerei mais e mais, desci mais fundo e fui mais longe ainda. Senti os meus pulmões lutarem desesperados por ar ao mesmo tempo que toda eu o renegava, sentia-os explodir de tensão no peito, mas não queria saber. Quando senti que era o fim, que ia desfalecer e encontrar a escuridão, meu pescoço rasgou-se de ambos os lados, como cortes feitos por garras afiadas, e de súbito estava aliviada e podia de novo respirar. Olhei-me, e entre meus dedos formaram-se membranas finas e translúcidas, o meu corpo assumira um tom azulado, os meus cabelos dançavam alegremente ao ritmo da corrente; os meus olhos já não ardiam, já não desfocavam, pelo contrário, a minha visão era agora mais límpida e precisa.
Estava livre, finalmente; solta, finalmente; viva, finalmente. Cheguei ao fundo e rocei com força na areia e nas algas verdes só para as poder sentir, e seu toque parecia seda macia e agradável. De um impulso subi o mais rápido que pude, e em instantes meu corpo harmonioso eclodiu da superfície e dei uma roda perfeita no ar, rodeada de uma chuva de grossas gotas cristalinas que admitiam efeitos de cores brilhantes com o reflexo do sol no céu limpo.
Quando de novo cai na água, vibrei. Não havia à minha volta tempo, espaço ou humanidade. Era eu e o mar, era eu o mar. Imortalidade e solidão eterna, alívio final para o sofrimento efémero.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Dá-me a tua mão



Estende-me a mão, e ler-te-ei a sina. No entanto, não a olharei sequer. Não me interessam traços longos, curtos, fundos ou superficiais. Não quero saber do cruzamento de linhas. Ah, abstracções mentais, doces ilusões... Não é esse o meu fado.
Estende-me a mão e agarrá-la-ei. Estende-ma, e verás como juntos somos capazes de compactar o destino numa caixinha de necessidades só nossa. Os búzios não são para ser atirados, são para ficar caídos na areia, são para sentir o mar, são para ser vistos e cheirados, para que alguém lhes pegue e os encoste ao ouvido apurado, com a curiosidade ingénua de quem teima em acreditar em mitos.
Estende-me a mão, mas não me peças para deitar cartas, porque não gosto de jogos de sorte; para mim há um jogo muito maior em curso, mais profundo, mais bonito. Eu sou uma carta, tu és outra. Nem sei em que mão estou, nem qual o meu valor, naipe, porque não imagem… o que interessa isso afinal? Serei jogada não sei por quem, num jogo sem fim previsível. O que me interessa a vitória?
Dá-me a mão, dar-te-ei em troca calma e paz, sem horas de meditação nem abstracção total, física, material. Não temos tempo para isso, o que passou não volta mais, de que nos vale tudo saber, se quando acordarmos do nosso transe não tivermos tempo para deixar testemunho a quem dele precisa?
Vá lá, estende-me a mão. Não tenhas medo porque não faço exorcismo, nem perderei horas com rituais mágicos. Gosto de runas, mas não atiro pedras. Creio em algo, mas não to direi, porque isso só a mim diz respeito. Só quero a tua mão.
Se ma deres, terás o teu fado. De mãos dadas correremos o mundo sentindo a cada passo dado, recordando a cada momento vivido, imaginando cada imagem que virá. Dá-me a mão, e prometo que no silêncio desse toque banal e íntimo descobrirás o que és, saberás o que eu sou, sem mistério, sem barreiras. Amarás em surdina, de olhos fechados, terás o mundo inteiro preso na mão aberta, pássaro livre que não foge da gaiola dourada sem grades nem portas, porque está lá de sua própria vontade, e isso é todo o seu propósito.
Dá-me a mão e mais nada te pedirei, porque mais nada terei a pedir. Seremos passado, presente e futuro; teremos tudo, e quem é pleno tem o destino traçado pelo ar que respira. O meu fado és tu, porque o meu coração dita que assim seja, e porque o seu bater é sentença final dum julgamento que é a vida. Crês na sorte? Eu também. Ainda queres um intermediário? Dá-me só a tua mão…


(Ontem tive a feliz surpresa de saber que, afinal, existe um universo de leitores da minha prosa ao qual eu era totalmente alheia. O meu enorme e sincero obrigada. Escrever dá um prazer muito maior quando se sabe que alguém aprecia as nossas palavras, mais ainda se esse alguém nos for estranho. Hoje posso dizer que um pequeno vazio dentro de mim foi preenchido por uma luz bem intensa. Farei o meu melhor, prometido.)

domingo, 27 de janeiro de 2008

Boémia


Dois cálices de vinho tinto a meio, entrelaçados, embalando uma conversa com intenções ocultas por detrás de palavras caras bem escolhidas.
A cera quente escorre pela vela esguia, a luz trémula da chama cintilante é reflectida nas paredes, que calam segredos e não julgam actos.
Música baixa, som harmonioso de piano e violino em sinfonia calma mas forte, num compasso com passos firmes de saltos altos. Arrepio quente espinha acima, olhar escaldante alma adentro.
Uma rosa vermelha em cima de uma mesa de madeira escura envernizada, espinhos bem afiados, folhas com orvalho fresco e puro, uma pétala caída, isolada, esquecida; ao lado um prato de loiça com bombons retorcidos de chocolate negro.
Uma mão feminina esticada para esse mesmo prato, longos dedos brancos e unhas pintadas com verniz bordeaux, ele sente na boca carnuda o prazer amargo do chocolate a derreter lentamente.
A noite é negra como breu, a lua cheia e bem redonda brilha alto, prateada, líquida, serena, vista da janela por entre os pesados reposteiros de veludo encarnado.
O coração bate forte no peito, o corpo é invadido por desejos avassaladores, a alma pede um consolo que não o pensamento, a vista já turva, a respiração torna-se mais ofegante a cada segundo. As mãos cedem ao que a mente já não controla há muito, uma alça preta de vestido de cetim escorrega por um ombro arrepiado, ao mesmo tempo que se ouve, abafado, o som seco de uma camisa branca atirada para o chão. Louca lascívia, santa boémia, sonho, realidade…quem deseja não resiste à tentação.
Nada mais que dois corpos e uma mesa na enigmática noite; um cálice observa, pesaroso, os estilhaços do outro para sempre perdido, afogado caco por caco numa mancha irregular que denuncia a luxúria de quem não bebeu o liquido derramado.
Se a música ainda toca, já ninguém ouve; se a lua ainda brilha, ninguém a admira; a pétala caída já não está isolada. My funny Valentine. Sweet comic Valentine…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Máscara


A minha mente assemelha-se, de certo modo, a um Carnaval que se aproxima a passos lentos e cautelosos: tem faces escondidas atrás de máscaras bizarras, tem palhaços mal caracterizados que não se percebe se riem ou choram, tem um toque de mistério profundo e estranheza subtil misturados com tudo o que, de tão ordinário e pestilento, os neutraliza e quase torna imperceptíveis.
Sou embalada numa melodia que não distingo entre o popular brejeiro e o alegre ritmo quente, deixo-me ir num cortejo que mistura políticos e travestis, samba e Veneza… procuro um espelho que não distorça, quero ver se sou uma criança que, pela primeira vez, veste o traje da princesa que de facto é, ou se sou, na verdade, uma adulta frustrada que, uma vez por ano, se aloja no disfarce daquilo que sempre quis ser.
Ouço os tambores e os risos, vejo as serpentinas brilhantes… sorrio. Mas depois vejo as perucas e as maquilhagens, ouço os impropérios, sinto na pele os abusos… fecho-me de novo.
A minha mente é afinal tão nacional como o Carnaval português. Ainda questiono o positivismo daí proveniente. Arrisco dizer que me sinto ao mesmo tempo o esplendor e potência do meu país, e o desânimo e falta de iniciativa da minha nação. Portugal nunca será mais do que aquilo que dele fizerem os portugueses. Eu também nunca serei mais do que aquilo que tiver forças para alcançar. Tiro a máscara. De vez. Atiro-a para longe. Será agora?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Dualidade


Cega de raiva e de dor corri para o exterior daquele espaço limpo e arrumado, cuja máscara decente e cautelosa protegia, tapava por completo a sua obscenidade, o seu odor repelente, o seu real propósito obscuro e ilegal. Apropriei-me de um espaço ao qual, na verdade, eu jamais poderia pertencer, tentei sem resultados adaptar-me ao sistema falhado.
Já não dava para aguentar nem mais um segundo. Fugi para lado nenhum, na rota errante dos vagabundos perdidos e dos sábios desesperados. Tomei o atalho dos pobres de espírito e percorri velozmente a viela dos cruéis. Quando dei por mim tinha chegado, imune, ao paraíso das sombras.
Ali nada existia, nada era, nada vivia, não havia mundo material. Vi monstros, bruxas, dragões, vampiros, dinossauros. Vi cavaleiros, duendes, fadas, heróis e elfos. Se vi Homens, não me dei conta. Vi a água da vida eterna, a pedra filosofal, o pote de ouro do final do arco-íris e um bando de gambozinos voando. Nada é verdade. Vi Deus, o céu e os anjos; vi Lúcifer, o inferno e as bestas. Não há de facto separação, nem muros ou barreiras, tudo é um todo, junto, único. Real ou imaginário estava ali e era um.
De repente senti-me desfalecer, como se finalmente eu, a falha sem elemento dual daquele mundo, tivesse sido encontrada e precisasse de ser retirada dali antes que fosse tarde demais. Quando acordei estava deitada na areia, as ondas lambiam-me já os pés descalços. Estava só numa praia deserta. Levantei-me e segui. Não tinha destino, não havia para onde ir. Ia começar a minha vida do zero com a certeza que não mais voltaria a confiar, com a certeza que quem constrói o destino sou eu.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Passado


Amo o que já foi. O passado é para mim fantástico, brilhante, magnifico, perfeito, simplesmente porque, e tal como o próprio nome indica, passado está, já foi, não volta mais, ocorreu e terminou.


A dor que senti ontem já passou; dela hoje apenas resta a memória. A paixão que dantes senti invadir-me e tomar-me de todo hoje apenas deixa ténues marcas da sua avassaladora passagem. E, tal qual estes, todos os outros momentos estão ultrapassados, vividos, corridos.


Sou, no fundo, uma espectadora inerte na margem de um rio que é a vida: o rio passa, as corrente fluem, a água escorre pelos meus dedos e eu posso vê-la, tocá-la, senti-la. No entanto ela vai e não volta mais, a gota que passou seguiu o seu rumo e não parou por minha causa, eu vivi esse momento se quis, se o deixei de lado não o terei mais.


Amo o que já foi, simplesmente porque já não é e não mais o será.




(Com um enorme pedido de desculpas por todo o tempo em que a minha palavra esteve ausente)