quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nevoeiro em mim

O silêncio abateu-se em mim com o denso nevoeiro da tarde. O branco líquido que se espalhou e cobriu o chão apenas deixava a descoberto pontas de telhados, que me pareciam uma cama de pregos. Foi como se o céu tivesse derramado um gigantesco pacote de leite acabado de sair do frigorífico, mesmo por cima da minha cabeça. De qualquer maneira, senti que foi também ele que, enquanto me envolvia, levou para longe as palavras, os outros e a paz.
Senti-me isolada e triste desde aí, mas só que nunca, sem porto onde me abrigar. Rodeie-me de livros, de palavras sábias que sempre me acompanham…mas as histórias pareciam ocas, as frases vazias de sentido, as personagens distantes e frias. Deambulei à deriva por entre os móveis e a rua, mas caminhava no meio de sombras, sem enxergar, e a névoa tinha o dom de, telepaticamente, me bloquear.
Não me apetece escrever. Não, de todo, não é isto que quero. Desta vez, ao contrário das outras, quanto mais escrevo mais se aperta o nó na minha garganta. Mais ténue fica a linha entre a pouca sociabilidade e a solidão. Cada palavra que escrevo torna mais funda a ferida que se instalou em mim. E, no entanto, não tenho mais nenhum sítio onde ficar que não nestas páginas que, ainda que molhadas pelas lágrimas que escorrem do meu rosto, são o mais perfeito espelho de mim, e único lugar onde poderei, eternamente, descansar em paz.

sábado, 26 de setembro de 2009

Fogo cigano

Noite quente, pés descalços no chão de terra batida, seca e gretada. Envolve-me o xaile negro que já viu mais corpos que as agulhas que o criaram. Meus olhos seguem o teu percurso, curiosos, ardentes. Junto à viola deixo que os acordes guiem os meus movimentos, ouço os risos e a voz rouca e embargada de quem canta com alma pura. O momento é mágico. Vejo-te, lentamente, caminhar para mim. Ouço um forte cavalgar a galope que nada mais é que o meu coração ao rubro. Estendes-me a mão, grande, forte, bela. Dou-te a minha como quem se entrega de corpo inteiro num único movimento. Dançamos. Meu corpo junto ao teu, nossos cheiros misturados, teus lábios tão perto dos meus que lhes consigo sentir o sabor. O alegre crepitar das chamas que connosco bailam na fogueira está espelhado nos teus olhos, e eu sinto que esse fogo me consome vorazmente. A viola geme e eu acompanho-a, saia ao vento, cabelo ao luar. A música pára mas não impede que o turbilhão em que giramos apenas os dois continue a unir-nos. Quando os teus lábios se fundem com os meus sei que a noite é eterna.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O domador de bonecas (parte 6)


Quando Marta acordou sentia a cabeça zonza e mal conseguia abrir os olhos. Demorou ainda alguns minutos, rodeada por um silêncio sepulcral, até conseguir recuperar totalmente a sua consciência e aperceber-se de onde estava e porque estava ali. A sua boca fora tapada com um largo pedaço de fita adesiva, os pequenos pulsos e tornozelos estavam atados com corda grosseira que a feria quando se tentava mexer. Continuava na cave, junto à mesa central, e não havia vestígios do homem. Aos poucos lembrou-se de como se tinham desenvolvido os momentos que precederam o seu desmaio.

Ela gritava e debatia-se com todas as forças de que dispunha frente ao monstro que a agarrava e a impedira de fugir, quando de repente ele a puxou até junto de uma das prateleiras, resistindo a unhadas e dentadas que Marta deferia, em desespero. Da estante, o homem tirara uma seringa e agulha de hospital, ainda embaladas, e também um frasquinho com uma substância cujo rótulo não conseguiu ler e, ainda que tivesse conseguido, provavelmente não saberia para que fim era utilizado. Ele encheu a seringa com o conteúdo do frasco e, indiferente às guinadas que ela tentava dar para se soltar, imobilizou-a o melhor que conseguiu e espetou-lhe a agulha no braço. Daí caíra para o sono letárgico.

E agora ali estava. O braço ainda lhe doía um pouco, no lugar da picada, mas a dor era o menos comparada com o medo do que lhe podia acontecer, a incógnita de onde estava e por quanto tempo ali poderia permanecer, a impotência frente àquele homem maior e mais forte que ela.


***


Paulo estava sentado na sua poltrona, envolto nos seus pensamentos distorcidos, tentando delinear um rumo para a miúda que encontrara a espionar nas suas coisas. Que raio, detestava quando as coisas fugiam ao que tinha planeado. Não fazia ideia de onde a criança vinha, mas ela ia trazer problemas.

Não a podia libertar, ela de certeza tinha família e ia fazer queixa dele. Não tardaria a aparecer a policia e a levá-lo, desta vez para bem pior que um reformatório. Não, libertar a garota estava fora de questão. Podia mantê-la com ele, viva. Mas seria um fardo. Já era complicado ter comida e bebida em condições quando só para ele, seria praticamente impossível conseguir para duas pessoas. Para além de que a miúda não iria querer ficar de livre vontade, portanto não andaria solta nem seria nunca digna de confiança.

Só lhe restava uma hipótese, e só de pensar em executá-la Paulo estremeceu dos pés á cabeça. Sentiu-se envolver por um misto daquilo que reconheceu como sendo prazer, insegurança, tristeza e ódio. A rapariga estava de pijama, certamente seguira-o sem avisar ninguém, logo não havia como seguir o seu paradeiro se fosse dada como desaparecida. Tinham passado anos desde que Paulo sentira o gosto amargo de ter a vida de alguém a escorrer-lhe pelos dedos, e no entanto era como se cada dia tivesse congelado, a partir da morte de seu pai. Sangue. Morte. Destino.

Mensagem


Taciturna, ela deslizou da tranquilidade do seu quarto soalheiro para o frio chão de tijoleira da sala. A mentalidade dos outros por vezes tinha o condão de a incomodar, maioritariamente era-lhe inconcebível e descabida tanto de sentido como de importância.
Alguns, no entanto, tinham sido chegados a ela. De alguns ela não esperava a estupidez e inércia cerebral que parecia invadir as massas de gente.
Decidida a pôr um ponto final naquele pensamento, pegou numa folha de papel em branco, destapou a sua caneta Bic e escreveu uma mensagem sem destinatário, como ela merecia ser enviada.

“O ser vivo mais desprezível esconde-se por detrás da máscara do anonimato num humano que, certamente, se move no mesmo espaço que nós. Consomem-no a inveja e o sentimento de inferioridade, a luta na qual entrou derrotado fomentam a raiva e a ira crescentes em si. O ciúme atrofia-lhe as entranhas e as suas atitudes demonstram que todo ele é um despojo disforme. Tenho pena de ti, falhado.”

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Reflexo

Vi o meu reflexo na água. A superfície ondulada dava ao meu rosto uma vida que ele não tinha, tornava os meus olhos brilhantes e rasos de lágrimas que deles não escorriam. E no entanto aquela parecia mais eu. Quase conseguia lembrar-me de como o meu cabelo ganhava luz e vitalidade ao vento. Os anos passaram e eu cresci, quase sem dar conta da mulher em que aos poucos o tempo e o destino me tornavam, moldada pelo meu jeito de criança. Aquela menina que um dia caíra ao lago para poder ver o seu reflexo não existia mais, e não tive tempo para me despedir dela. Toquei a água com a ponta dos dedos, senti o frio atravessar-me o braço e envolver o meu coração. Está quente cá dentro.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Máquina de guerra

Os olhos fitam o frenesim do mundo enchendo-se de solidão. A multidão corre apressada chocando com a humanidade e o isolamento no caos é inevitável e doloroso. É-me impossível não sentir que sou um ponto nulo numa soma de parcelas cujo total não ultrapassa certamente a unidade. Ainda assim sofro por isso, sinto falta da proximidade e do calor daqueles que são formados pela mesma carne e osso que eu, que me rodeiam numa frieza de aço mecanizado e se assemelham a maquinaria pesada. O sangue que lhes corre nas veias tem o cheiro e o poder do verde, a aparência do cinzento. Não sou assim. Vejo a paisagem colorida das janelas dissolver-se numa massa incolor, rígida e impenetrável. O cheiro do perfume dos outros fundiu-se com o fumo dos carros, em vez de risos e vozes ouço o retinir grave e compassado dos motores. Não posso mais, não quero mais. Isolem-me no vazio natural mas tirem-me da solidão da gente.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O domador de bonecas (parte 5)


A um canto aninhada, encolhida sobre si mesma envolvendo as pernas com os braços, Marta estava aterrorizada. Tremia e choramingava. Não conseguia parar de fitar os rostos frios e sem vida que a atormentavam de todos os cantos parecendo gritar o seu nome. Não sabia nem queria imaginar o que poderiam conter as caixas e sacos que jaziam ao seu lado na estante, impávidos, emanando um fedor a sangue. À mísera luz azulada daquele candeeiro, chegava a parecer uma das próprias bonecas, em tamanho real, que ganhara vida e esperava a sua mutilação.
Tão perdida estava nos seus pesadelos e nas igualmente terríveis imagens que a rodeavam e atormentavam que não soube quanto tempo passou até que ouviu ranger uma porta mal oleada. Um aperto maior dominou o seu coração de modo a que, de tanto saltar, ele parecia querer sair pela boca. Rangeram umas escadas nas quais não tinha ainda reparado, escondidas na penumbra por detrás da estante enfrente àquela em que se encontrava sentada e acendeu-se uma forte e brilhante luz branca na cave. Primeiro viu os pés que soube serem do homem manco. Tinha calçadas umas botas rotas e gastas que deixavam também visíveis umas meias sujas por debaixo. Dos pés às pernas pouco durou, e logo o homem aparecia inteiro no seu campo de visão, com a mesma mochila que a levara a segui-lo.
De perto ele era ainda mais horrendo que de longe. A sua cara era digna do pior dos vilões do cinema. Nela habitavam todo o tipo de cortes recentes e velhas cicatrizes, juntamente com sujidade tanto de pó e comida como de sangue. Mas as próprias feições em si, se alguma vez haviam sido belas, há muito o tinham deixado de ser. Os olhos eram pequenos, escuros, brilhantes, frios e impenetráveis, como os de um animal selvagem. A barba densa e o bigode tapavam a maioria do rosto, deixando apenas de fora um nariz grande, maçãs do rosto com vestígios de bexigas e uma testa quase inteiramente ocupada pelas sobrancelhas. O cabelo, mal cortado e colado em madeixas de tão sujo, deixava aparecerem orelhas grandes, uma das quais a que faltava um bocado que parecia ter sido arrancado por uma dentada. A pequena conseguia também ver-lhe as mãos, saídas dos punhos sem botões da andrajosa camisa. Eram demasiado grandes para a altura do homem, e estavam também elas sujas e repletas de cortes. As unhas, enormes e amareladas, pareciam garras de lobo. Mas foi a enorme faca que lhe saia como uma extensão da própria mão que fez com que Marta, paralisada de medo, não conseguisse mais conter o grito que lhe aflorou á garganta.
Paulo foi invadido pela surpresa quando viu sentada na sua estante de troféus uma criança de pijama e olhos inchados de chorar. Não sabia como raio ela lá tinha ido parar, mas uma coisa era certa, tinha de sair, já, depressa e calada. Não soube o que fazer nem o que pensar, aquele momento parecia-lhe um insólito.
O homem estava parado, a olhar para ela, a uma distância de poucos metros que deixava Marta totalmente exposta. Mas ele parecia saber tão bem o que fazer quanto ela. Num rasgo de esperança passou-lhe pela cabeça a ideia tresloucada de sair de novo pela janela e correr sem parar todo o caminho que a separava de casa, do calor do abraço do seu pai. E assim que o pensou mais depressa o fez. Largou a correr para o sítio onde sabia estar a janela, pulou e agarrou o parapeito sujo à primeira.
Os olhos quase lhe saltaram das órbitas quando viu a miúda num ímpeto acelerar para a pequena janela da cave. Mas ela cabia ali? Onde pensava ela que ia? O que raio se estava a passar? Tinha de a agarrar enquanto era tempo.
As mãos agarram-na pelos tornozelos enquanto Marta fazia força com os braços para se conseguir içar inteira para fora daquele lugar. Marta gritou e esperneou tentando livrar-se dos dedos que a seguravam firmemente, mas de nada adiantou, estava bem presa e o homem começava a puxá-la com força para baixo. A rapariga ficou com as mãos arranhadas e ensanguentadas de lutar por conseguir ficar agarrada ao parapeito, mas em poucos segundos estava já nos braços do homem, que a virou de frente para si e a fitava directamente nos olhos. Marta gritou e gritou, cuspiu-lhe a cara e mordeu-lhe os braços, mas ele parecia indiferente à dor e nem sequer a sua expressão se alterava quando os golpes eram desferidos.
Paulo não sabia o que pensar acerca da pequena criatura que se deparava à sua frente, frenética, decidida a magoá-lo e a conseguir fugir em liberdade. A criança estava cheia de medo e temia por todos os lados, mas lutava com a força de um guerreiro. Demorou a dominá-la. Mas não podia mais permitir que voltasse a tentar escapar. Marta tinha o destino traçado: ia ser amarrada.

Quem dera...



As minhas certezas são como bolas de sabão: redondas, belas, cintilantes. Inúteis e fugazes. Com a minha cara nelas reflectida, brilham ao sol, dançam durante uns segundos, o mundo parece parar nelas mesmas... e então, quando menos se espera, rompem numa chuva de gotas matizadas pelas cores do arco-íris. Foram luz. São vazio.


Ninguém segura uma certeza. Quem a tenta prender logo a transforma em passado.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Luxúria líquida




Para uma pessoa muito especial. Treze meses completos. Muito obrigada @
10.08.08



A claridade ténue e mística do quarto era penetrante e doce aos sentidos. Com nada mas o teu respirar servindo de batida ao meu ansioso coração, agitado dentro do peito, deixei que os olhos se habituassem à pouca luz e segui languidamente até à cama, onde já te encontravas, tranquilamente me esperando.
Dentro de mim um turbilhão misturava os sentidos e as emoções, uma força cadenciada impulsionava o meu corpo para junto do teu, como se ele tivesse vontade própria e a minha mente não só o permitisse como o venerasse. Não tinha nem queria ter controlo sobre mim, gostava de permanecer eternamente naquele transe hipnótico que nos unia em perfeição. O teu toque, a tua pele macia, o teu cheiro tão pessoal, forte e dominante. As minhas mãos presas como ventosas aos contornos rijos do teu corpo, percorrendo avidamente o peito, a barriga, as costas, desejando mais e mais. Senti o desejo aumentar num apogeu de luxúria e paixão. Luxúria líquida a correr nas veias, vertendo dos lábios, palpitando no copo e percorrendo as entranhas.
Neste momento e neste lugar está centrado o mais vedado e misterioso enigma do universo, e é meu e teu, nosso e da força inabalável que nos une, do turbilhão de acasos inexplicáveis que nos envolve e caracteriza. Os teus lábios molhados conhecem as curvas do meu corpo. A tua língua partilha a avidez quente da minha, e elas envolvem-se com a naturalidade de quem respira e quer viver. A pele arrepiada do meu pescoço ao passar da tua boca pede ao peito que gema e eu estremeço, sabendo que não estou louca mas que pouco falta, que, se o ficar, terá valido muito a pena.
Sinto as minhas pernas contorcerem e apertarem-te mais ainda contra mim, sei que os meus olhos fechados vêm mais do que até agora alguma vez fizeram. Levo a mão aos teus cabelos fortes, ondulados, indomáveis como tu. Acaricio-te, provoco-te, intensifico a excitação partilhada naquela cama e sinto o gosto intenso do teu prazer revirar-me de dentro para fora. A onda de calor e paixão enubla e entorpece ao mesmo tempo que sei que são os teus braços que puxam o meu tronco para o teu peito e nele encostam suave e delicadamente a minha cabeça que ainda gira.Relaxo de dedos entrelaçados nos teus, prestando toda atenção à textura da tua pele, ao ritmo do teu respirar. Sinto a bomba frenética que batia no peito acalmar até ronronar, feliz. Sorrio sem querer. A realidade volta a ser nítida, entre nós não existe espaço para pudor, vergonha, mentira, culpa. Não há necessidade de falar quando os meus olhos fixam os teus, mas ainda assim dos meus lábios solta-se um “Amo-te” que significa mais do que alguma vez saberei explicar. Traçarei o meu rumo a par com o teu.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O domador de bonecas (parte 4)


Marta, escondida nas sombras, teve medo. Percebeu, com o passar das nuvens, que o seu esconderijo a traía mais vezes do que aquelas que seriam sustentáveis. Procurou melhor refúgio nos troncos, e à falta de resultados visíveis, optou por dar a volta à casa. Não se poderia manter ali, tão vulnerável àquela janela na qual habitava agora, como apresentador de televisão, o homem que era objecto dos seus mais sombrios receios.
A casa era pequena. A rapariga viu a degradação nas frechas de uma das laterais, no musgo que acumulavam, passivas, as traseiras do mórbido aglomerado de tijolos. Já estava na última parede quando reparou num pormenor. Daquele lado havia, bem junto ao chão, uma janelinha rectangular, minúscula, para aquilo que parecia ser uma cave. Marta reparou nela porque de dentro vinha uma luz, azulada, intermitente, que parecia de outro mundo e estava em tudo fora do contexto. A avaliar pelo som o homem ainda estava na sala, e ali fora não havia protecção. Além do mais estava frio. E queria a sua boneca de volta. Não hesitou mais.
Enquanto se esgueirava até à janela Marta lembrou-se da noite que perdera a mãe naquele trágico acidente de automóvel. Ainda conseguia ouvir o seu afiado grito agudo. Ainda conseguia ver, como viu pelo espelho retrovisor interno, o seu olhar angustiado e aterrorizado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, e o desejo de recuperar aquela boneca aumentou.
Encolheu-se e entrou pela janela, que não passava de um buraco com restos de vidro já alisados pelo tempo, de uma só vez.
O espaço era aterrador. Mais sombrio, de longe, que o decrépito esboço de habitação visível do exterior. Havia uma mesa de metal ao centro, rectangular, vazia e imaculadamente limpa. As paredes estavam cobertas de estantes que iam do chão ao tecto, na sua grande maioria ocupadas. Por bonecas.
Bonecas decapitadas e com as cabeças, belas e trucidadas, em frascos de álcool. Bonecas sem membros, presas em artifícios que corrompiam as poses para as quais foram criadas e as tornavam diabólicas, possuídas. Bonecas em esgares de raiva, de ódio, de luxúria, de traição. Um monte de imitações de mulher, todas inicialmente belas, transformadas em monstros de cabelo eriçado e feições desumanas. E, naquilo que parecia ser um placard por detrás da porta, jaziam fotografias. Do modo de como cada uma das bonecas fora conseguida.

***

Com nojo, raiva e ira, Paulo arrancou a boneca da mochila pela cabeça e partiu-a no chão. Parecia que ainda conseguia ouvir o comentário do polícia naquele mesmo dia, quando esperou o seu veredicto na esquadra. “As mulheres são iguais às bonecas de porcelana. Lindas e frias. Pena que também se partam. Esta era pêga na esquina da 24. Toda a gente sabia que tinha um filho.”. Fora levado pouco depois para um reformatório, de onde fugira depois de causar vários problemas, alguns graves, com quem se cruzasse no seu caminho.
A sua obsessão por bonecas começara de imediato. Na única noite que passou no calabouço teve o sono atormentado pelo rosto e corpo de sua mãe transformado em loiça. Os olhos brilhantes de vidro choravam sangue negro, inexpressivos. Apenas as gotas grossas que escorriam lentamente pelo rosto pálido e delicado davam vida à sua imagem, deixavam marcas e tingiam-lhe a roupa, até toda ela se transformar numa poça negra. Os sonhos não pararam, transformaram-se em desenhos mórbidos e incompreensíveis de bonecas lindas mas miseráveis, vitimas de todo o tipo de abuso, condenadas à desgraça.Quando descobrira ao largo daquela pacata cidade uma casa vazia rodeada de sombras soube que aquele era o sítio ideal para si. Esperou vários dias, observando por entre as árvores, até decidir habitar o cubículo. Vivia ali há anos, sem água, com luz obtida por ligação directa e ilegal aos postos de abastecimento mais próximos. Alimentava-se de restos que encontrava, por vezes na rua, outras em mesas de cafés ou restaurantes já sem clientes mas ainda sujas. Tomava banho em fontes e bebia delas, também. Colhia roupas do lixo. Ninguém o via, porque ninguém queria reparar em tamanho desgraçado, feio, sujo e miserável, manco e pobre. Não se lembrava da última vez que abrira a boca para falar que não consigo mesmo. E coleccionava bonecas de porcelana, de certo modo. Era um nada vivo, carcaça de gente…mas respirava.

Megalomania



Acordei com o fulgor epiléptico de quem pula em vez de andar. Toda eu era alegria e vontade de viver, cada lufada de ar inalado gritava a sua força nos meus pulmões, cada batida sonante do meu coração quente era lenha de uma fogueira sem fim cujo fogo crepitava sabendo que tudo girava à sua volta.
No meu olhar residia a chama do sentido. Não havia ponta desatada e solta no novelo em que se tornava, dia após dia, a minha vida ainda breve. O relógio gira, e eu giro com ele, deixo o cabelo solto ao vento e monto a cela desde touro bravo do qual poderei cair, mas que não largarei enquanto o sol brilhar.
Sei que o meu corpo está entrelaçado no teu, que consumo e emito raios de paixão. As minhas curvas pedem as tuas mãos, e o teu toque exige mais do que o real. Ah, louca seja se essa for a vontade dos deuses, sou desvairada mas sou feliz, estou completa e realizada.
O espelho mostra as asas que me nasceram nas costas, longas e afiladas, brilhantes, reluzentes, velozes. Elas vibram e oscilam, como quem quer mostrar o que vale, e eu olho-as deliciada. Cada pedaço de mim é agora orgulho do que conquistei, do que sou, daquilo em que me tornaste, da potencialidade do que me poderei vir a tornar.


Sei que a Terra gira na palma da minha mão, que num sopro ela sai dos eixos e, como uma pena, fica suspensa no infinito, frágil bola de sabão, anda até rebentar. O mundo inteiro de pernas para o ar.

...fez-se luz


Sem norte ela caminhou, dias a fio, sem saber por onde ia. Olhou sem ver, perdida em doces recordações, viveu sem deixar pegadas na areia. Procurou, incessantemente, o brilho imenso dos seus olhos em qualquer outro ponto do universo, sabendo que nem o mar alguma vez o igualaria. Reviveu na sua mente cada recanto do mundo dele que a abarca com tanta ternura e cumplicidade. Quando o sentiu voltar, o círculo fechou. No canto dos seus lábios nasceu, doce, um sorriso sincero e sentido. Ressuscitou, pura, no calor do seu abraço apertado e seguro. Soube sem pensar nem querer que o amor que sentia era maior que a própria alma, e era ditado por alguém maior do que ela. Não se importou e entregou-se, inteira. Ela é feliz, no fundo, ela é muito feliz.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O domador de bonecas (parte 3)



Paulo vivia com a mãe, Sara, nas águas furtadas de um prédio localizado perto do centro da cidade. Segundo o que a mãe lhe contara há anos, quando ele notara a ausência do pai e lhe perguntara acerca do seu paradeiro, era órfão de pai. Este morrera tragicamente num acidente de viação. O assunto devia magoar ainda a sua mãe, porque esta desviava sempre o olhar quando ele vinha à baila. No fundo, não interessava, não era preciso deixar a mãe triste. Sara era uma mulher linda, sempre bem-disposta, que lhe dava tudo para o fazer feliz. Trabalhava de noite, fazia limpezas numa estacão de rádio. O horário era mau, mas dava-lhe todo o dia para cuidar de Paulo. Ele tinha uma adoração sem limites pela mãe. No fundo, quem nunca perdoara fora o pai, por ter partido sem o conhecer.
A ausência da mãe era muito custosa. Ela deitava-o, fazia-lhe companhia até ele adormecer (ou fingir que adormecia) e depois dava-lhe um beijo na testa, saia sem fazer barulho e apagava a luz fraca. A porta de casa batia e ele sabia que ela tinha ido trabalhar. “Ela volta…” era o que dizia a si mesmo, todas as noites. E ela voltava, cansada e de lágrimas nos olhos, todas as manhãs, acordava-o, dava-lhe banho e pequeno-almoço e levava-o à escola, enquanto se esforçava por sorrir e fazê-lo sentir bem.
Um dia, já com 7 anos, estava deitado na cama mas não conseguia dormir. Os vizinhos estavam a discutir furiosamente e os gritos e estoiros de loiça a quebrar ecoavam pelo prédio, incessantemente. Pouco passava da meia-noite quando outras vozes se juntaram ao rol. Estranhamente, reconheceu a de sua mãe. De imediato, levantou-se da cama, correu para o hall da entrada e encostou o ouvido à porta. Para além da voz de Sara, ouvia-se também uma voz grossa e torpe de homem já muito embriagado.
“Anda cá, porca, não penses que me esqueço de ti!” dizia o homem.
“Larga-me! Saí da minha vida, já te disse, vai-te embora!” respondia a voz entrecortada e ofegante da sua mãe, enquanto subia a escada.
Sara atingiu o patamar e Paulo, de olhos esbugalhados pela surpresa e pelo medo, abriu-lhe a porta. Quando deu conta de que o filho a olhava, chocado, chorou. As suas roupas em nada pareciam as habituais. Estava quase despida, com uma saia muito justa que mal lhe tapava o rabo e lhe deixava as coxas à vista debaixo de collants de seda esgaçadas e um top curtíssimo e colado ao corpo, sem sutiã por baixo. “Desculpa…” balbuciou baixinho, enquanto que o seu seguidor chegava, com dificuldade, ao topo das escadas.
O bêbado chegou ao pé de Sara e esbofeteou-a.
“É este?” perguntou-lhe “Responde-me, vadia! Ah, nem te dês ao trabalho. Já vi pelo teu choro que sim… Oh, tu aí! Ainda por cima és franzino, sais á tua mãe. Sou teu pai. Cliente tão assíduo desta cadela que a deixei prenha… Já passaram 7 anos e ela insistia em não me dizer onde estavas…tive de a seguir, pois claro!”
Paulo não teve reacção. Percebeu que também chorava quando sentiu o gosto salgado das lágrimas a escorrer-lhe por entre os lábios para dentro da boca, seca com o susto, com a dúvida e o ódio por aquele estranho. De repente viu a mãe atirar-se àquele homem de quem nem sabia o nome. Ele estava bêbado, é certo, mas era muito mais forte que ela. Numa questão de segundos dominou-a e, sem pensar duas vezes, atirou-a pelas escadas. Paulo, inerte, de olhar parado, distante, e semblante gelado, nada fez. Ficou parado, enquanto o bêbado se inclinava no vão da escada para ver os efeitos do seu golpe. O baque do corpo da mãe a rebolar pelas escadas e o estalar de madeira velha e podre parou.
“Olha que a avaliar pela poça de sangue que se está a formar à volta dela ficámos sem o lado feminino desta família tão unida… É pena…era uma gaja boa e uma boa gaja!”
Paulo sentia o cheiro ácido do álcool de longe, aliás, este já empestava todo o patamar. Não sabe que força o moveu quando, enquanto o homem se debruçava de novo, correu para ele e o empurrou com todas as suas forças. Cedo as mãos se lhe mancharam de sangue.

O domador de bonecas (parte 2)


Paulo chegou á sua casa bastante contente com a colheita da noite. Há meses que tudo o que conseguia era uma média de duas bonecas por semana, roubadas discretamente a miúdas histericamente felizes. “Nem sabem do que riem!”, pensava ele das pequenas criaturas irrequietas, de riso fácil e olhar brilhante. Crianças repugnavam-no. De resto, adultos também. A humanidade era uma massa homogénea, não havia alma que se safasse a tal. Mas os mais pequenos, de tão frágeis, necessitados e, ainda por cima, felizes, eram-lhe totalmente insuportáveis. Talvez por isso tivesse tomado a decisão de os assaltar e ouvir, ao longe, chorar as suas pequenas perdas. Por isso e porque precisava das bonecas, claro. Meteu a chave à porta e entrou.
Durante o caminho ele nem se apercebera do pequeno vulto que o seguia, tiritando de frio e de medo. Andou atrás daquele homem saído directamente das sombras durante meia hora e já julgava que estava perdida e que ele não tinha um destino, quando por entre as árvores dum pequeno bosque que existia na periferia da cidade viu os contornos ténues de uma casa térrea. Marta ficou ainda mais assustada quando viu o lugar onde aquela perseguição a levara. A casa era medonha. Não estava pintada, e por entre o tijolo e o cimento cresciam ervas. Do telhado não se sabia se as telhas tinham saltado ou se este simplesmente fora feito sem elas, tal era a quantidade que faltava. Não havia jardim, vedação, nem nada que se parecesse. A casa surgia, como por artes mágicas, no meio duma clareira, e a dimensão do espaço era restringida às paredes da mesma. A tremer mais ainda mas disposta a não abandonar aquele lugar sem a sua boneca, Marta escondeu-se atrás de uma árvore e espreitou o que se passava do interior da casa, através da luz acesa no interior vista por uma pequena janela, de vidro tosco quebrado.


***


Paulo acendeu a luz, pousou a mochila na sua poltrona esfarrapada e abriu a porta do frigorífico. Nada comestível e ainda menos no prazo, como de costume. Tirou uma cerveja já a meio que se encontrava entre uma sandes em pão bolorento e um prato com vários caroços de maçã mal aproveitados. Bebeu-a sem parecer reparar na, ou lamentar a, imundice em que vivia.
Quando acabou atirou-a para o chão, e olhou, sorrindo, a mochila ainda cheia que o olhava da poltrona. Uma das bonecas tinha ficado de cabeça de fora, quando ele fechara a mochila. Olhou com desprezo para aquele despojo de feições humanas sorridentes que, de olhar vazio, o fitava. Loira, de longos cabelos encaracolados, tez branca imaculada e olhos verdes, grandes, a boneca era muito parecida com a sua mãe. “Puta.” pensou, afugentado a vaga lembrança que o invadira. Sentiu de imediato as fortíssimas dores de cabeça e reviveu os duros momentos que tinham para sempre mudado o rumo da sua vida.