Marta, escondida nas sombras, teve medo. Percebeu, com o passar das nuvens, que o seu esconderijo a traía mais vezes do que aquelas que seriam sustentáveis. Procurou melhor refúgio nos troncos, e à falta de resultados visíveis, optou por dar a volta à casa. Não se poderia manter ali, tão vulnerável àquela janela na qual habitava agora, como apresentador de televisão, o homem que era objecto dos seus mais sombrios receios.
A casa era pequena. A rapariga viu a degradação nas frechas de uma das laterais, no musgo que acumulavam, passivas, as traseiras do mórbido aglomerado de tijolos. Já estava na última parede quando reparou num pormenor. Daquele lado havia, bem junto ao chão, uma janelinha rectangular, minúscula, para aquilo que parecia ser uma cave. Marta reparou nela porque de dentro vinha uma luz, azulada, intermitente, que parecia de outro mundo e estava em tudo fora do contexto. A avaliar pelo som o homem ainda estava na sala, e ali fora não havia protecção. Além do mais estava frio. E queria a sua boneca de volta. Não hesitou mais.
Enquanto se esgueirava até à janela Marta lembrou-se da noite que perdera a mãe naquele trágico acidente de automóvel. Ainda conseguia ouvir o seu afiado grito agudo. Ainda conseguia ver, como viu pelo espelho retrovisor interno, o seu olhar angustiado e aterrorizado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, e o desejo de recuperar aquela boneca aumentou.
Encolheu-se e entrou pela janela, que não passava de um buraco com restos de vidro já alisados pelo tempo, de uma só vez.
O espaço era aterrador. Mais sombrio, de longe, que o decrépito esboço de habitação visível do exterior. Havia uma mesa de metal ao centro, rectangular, vazia e imaculadamente limpa. As paredes estavam cobertas de estantes que iam do chão ao tecto, na sua grande maioria ocupadas. Por bonecas.
Bonecas decapitadas e com as cabeças, belas e trucidadas, em frascos de álcool. Bonecas sem membros, presas em artifícios que corrompiam as poses para as quais foram criadas e as tornavam diabólicas, possuídas. Bonecas em esgares de raiva, de ódio, de luxúria, de traição. Um monte de imitações de mulher, todas inicialmente belas, transformadas em monstros de cabelo eriçado e feições desumanas. E, naquilo que parecia ser um placard por detrás da porta, jaziam fotografias. Do modo de como cada uma das bonecas fora conseguida.
A casa era pequena. A rapariga viu a degradação nas frechas de uma das laterais, no musgo que acumulavam, passivas, as traseiras do mórbido aglomerado de tijolos. Já estava na última parede quando reparou num pormenor. Daquele lado havia, bem junto ao chão, uma janelinha rectangular, minúscula, para aquilo que parecia ser uma cave. Marta reparou nela porque de dentro vinha uma luz, azulada, intermitente, que parecia de outro mundo e estava em tudo fora do contexto. A avaliar pelo som o homem ainda estava na sala, e ali fora não havia protecção. Além do mais estava frio. E queria a sua boneca de volta. Não hesitou mais.
Enquanto se esgueirava até à janela Marta lembrou-se da noite que perdera a mãe naquele trágico acidente de automóvel. Ainda conseguia ouvir o seu afiado grito agudo. Ainda conseguia ver, como viu pelo espelho retrovisor interno, o seu olhar angustiado e aterrorizado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, e o desejo de recuperar aquela boneca aumentou.
Encolheu-se e entrou pela janela, que não passava de um buraco com restos de vidro já alisados pelo tempo, de uma só vez.
O espaço era aterrador. Mais sombrio, de longe, que o decrépito esboço de habitação visível do exterior. Havia uma mesa de metal ao centro, rectangular, vazia e imaculadamente limpa. As paredes estavam cobertas de estantes que iam do chão ao tecto, na sua grande maioria ocupadas. Por bonecas.
Bonecas decapitadas e com as cabeças, belas e trucidadas, em frascos de álcool. Bonecas sem membros, presas em artifícios que corrompiam as poses para as quais foram criadas e as tornavam diabólicas, possuídas. Bonecas em esgares de raiva, de ódio, de luxúria, de traição. Um monte de imitações de mulher, todas inicialmente belas, transformadas em monstros de cabelo eriçado e feições desumanas. E, naquilo que parecia ser um placard por detrás da porta, jaziam fotografias. Do modo de como cada uma das bonecas fora conseguida.
***
Com nojo, raiva e ira, Paulo arrancou a boneca da mochila pela cabeça e partiu-a no chão. Parecia que ainda conseguia ouvir o comentário do polícia naquele mesmo dia, quando esperou o seu veredicto na esquadra. “As mulheres são iguais às bonecas de porcelana. Lindas e frias. Pena que também se partam. Esta era pêga na esquina da 24. Toda a gente sabia que tinha um filho.”. Fora levado pouco depois para um reformatório, de onde fugira depois de causar vários problemas, alguns graves, com quem se cruzasse no seu caminho.
A sua obsessão por bonecas começara de imediato. Na única noite que passou no calabouço teve o sono atormentado pelo rosto e corpo de sua mãe transformado em loiça. Os olhos brilhantes de vidro choravam sangue negro, inexpressivos. Apenas as gotas grossas que escorriam lentamente pelo rosto pálido e delicado davam vida à sua imagem, deixavam marcas e tingiam-lhe a roupa, até toda ela se transformar numa poça negra. Os sonhos não pararam, transformaram-se em desenhos mórbidos e incompreensíveis de bonecas lindas mas miseráveis, vitimas de todo o tipo de abuso, condenadas à desgraça.Quando descobrira ao largo daquela pacata cidade uma casa vazia rodeada de sombras soube que aquele era o sítio ideal para si. Esperou vários dias, observando por entre as árvores, até decidir habitar o cubículo. Vivia ali há anos, sem água, com luz obtida por ligação directa e ilegal aos postos de abastecimento mais próximos. Alimentava-se de restos que encontrava, por vezes na rua, outras em mesas de cafés ou restaurantes já sem clientes mas ainda sujas. Tomava banho em fontes e bebia delas, também. Colhia roupas do lixo. Ninguém o via, porque ninguém queria reparar em tamanho desgraçado, feio, sujo e miserável, manco e pobre. Não se lembrava da última vez que abrira a boca para falar que não consigo mesmo. E coleccionava bonecas de porcelana, de certo modo. Era um nada vivo, carcaça de gente…mas respirava.
3 comentários:
Cada vez gosto mais de ler os teus textos. Para quando o livro? ;)
Adorei (ou estou a adorar, se tiver continuação) a história. Sem dúvida, tens um futuro promissor Ritinha :D.
As coitadas das personagens é que são umas desgraçadas xD dois textos em que pareces uma criança eufórica e feliz no meio destes, fazem um grande contraste! Tens tanto talento! Tanto para narrares como para uma escrita mais intimista (não sei se acabei de inventar uma palavra, que desgraça xD) que só a ti te diz respeito. Consegues transmitir tão bem o que sentes, consegui "sentir" a tua felicidade (acho que entendes a ideias) e consegui visualizar cada detalhe da tua história. Beijinhos
Adorei. Texto maravilhoso! (:
Gostaria de algumas dicas, eu também escrevo, mas sou nova nisso e estava pensando em pedir ajuda... Tenho 16 anos, e realmente amo escrever, me sinto feliz quando faço isso! Se quiser me ajudar meu email é camillesrock@hotmail.com.
Obrigada.
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