terça-feira, 27 de maio de 2008

Com Pã, rumo aos Andes!

Estou sentada num comboio vulgar, talvez demasiado vazio, com um caderno apoiado nas pernas dobradas, óculos escuros postos, olhar perdido, focado na paisagem disforme. Tenho uma caneta Bic na mão, e distraidamente vou-lhe roendo a tampa, enquanto espero que a mente esteja suficientemente vazia para que as palavras surjam.
De repente, ao dar-me conta de que concentrar-me naquelas condições seria impossível, sorri. Do meu mp3 brotavam as notas puras, de timbre característico, da eterna e inconfundível flauta-de-pã. Se fechasse os olhos via, em câmara lenta, os Andes bem à minha frente, a sua harmonia plácida, a sua calma resplandecente, o seu esplendor sábio. Se os mantivesse fechados e me deixasse levar pela melodia que deslizava para os meus ouvidos podia ver bem na minha frente os rostos morenos dos ameríndios: o seu negro olhar penetrante e inteligente, o seu imponente e magro nariz adunco, o liso e preto cabelo comprido, ao vento, enfeitado com os mais variados pendentes coloridos.
Abro os olhos, na sombra das lentes que impedem a minha observação de ser percebida. À minha volta há prédios altos, uns luxuosos e pintados de fresco, outros bem antigos, rachados pelo tempo e corroídos pela humidade, entrecortando o céu nublado, de cor indefinida. Fecho os olhos e elas lá estão, as cabanas bicudas, de vários tamanhos, suas palhas e tecidos baloiçando ao vento sob um céu alaranjado que emana frescura…ouço a flauta.
De novo a minha realidade, as pessoas errantes cheias de pressa e alheias ao mundo: mulheres equilibradas em saltos finos, de maquilhagem carregada e cabelo estático, homens de fato escuro e gravata apertada, sapatos lustrosos, malas de linhas rectas, relógios no pulso. Em todos o mesmo olhar vazio, a mesma pressa de viver, o mesmo telemóvel no bolso, a mesma solidão acompanhada num caótico mundo cheio demais. Das canas de bambu chegava o som causado pela pressão do ar que as percorria: ao ritmo da natureza, leve como o próprio ar, fluido como a água, quente como fogo e próspero como a terra, o povo dos Andes dança num compasso afinado. Sobre os corpos dourados assentam roupas manufacturadas, todas iguais mas todas diferentes; nas peles a tinta colorida grava os mais diversos símbolos, cada qual com o seu significado. Dos pescoços, pulsos e tornozelos pendem adornos diversos, penas, pedras, contas… natureza talhada pelo Homem, para o Homem, à medida do Homem.
Sei que se abrir os olhos, mesmo sem desligar o mp3, posso ouvir o som estridente das buzinas, o motor dos carros, os alarmes dos aparelhos electrónicos, a voz distorcida pelas ondas que a transmitem. Mas prefiro mantê-los fechados, respirar fundo e aproveitar estes breves minutos de calma que me estão a ser proporcionados por alguém que nada mais vez que soprar para uma cana.
É esta, minha, a sociedade desenvolvida? Não será mais Homem aquele que sobrevive em harmonia com a natureza e dela usufrui que este meu, que a destrói e a aniquila em prol de metal escuro e frio?

Hoje, eu preferia dormir ao relento sob um céu estrelado, ouvindo o canto do rio e dos pássaros, olhando os contornos da montanha, pintando os meus sonhos com pegadas descalças, sentindo nos pés o áspero granulado da terra, nos seios o macio da pele trabalhada, no rosto o frio da noite, nas mãos o macio das penas…
Preferia mesmo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Continua assim! Gostei muito deste tema ;)

Anónimo disse...

a Natureza e algo inexplicavelmente belo!
eu amo a! passo as noites no campo cada vez mais contaminado pela urbanizacao e de dia vivo o inferno de uma cidade como Lisboa!
a verdade e que ja custou mais!

es boa mt boa nisto toto