sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mar eterno


A brisa moldava-me o cabelo e invadia-me a alma enquanto calmamente caminhava pela areia seca. Descalça, conseguia sentir a textura fria dos seus finos grãos entre os dedos, marcando a minha breve passagem.
E então a mudança. A areia era agora molhada, mais dura e ainda mais fria. Sentia a humidade ao pôr o pé no chão, mas não hesitava, não tinha porque o fazer. À minha frente, o ruído do mar era ensurdecedor, aquele estrondoso e fascinante espectáculo prendia-me, estava de braço dado com as ondas, que, poderosas, rugiam e estalavam. A água, gelada, molhada, congelava-me os pés e os tornozelos, podia sentir a espuma branca dissolver-se na minha pele.
Como uma só alma, eu vivia e era a onda. Desinibida, abri a boca e rugi violentamente, libertei toda a fúria, corri desalmadamente e por fim morri na areia, dissolvendo-me e trespassando os seus finos grãos até finalmente desaparecer. Mas o meu impulso gerou outras ondas, tão fortes como eu, e assim de facto nunca morro, nunca acabo, nunca termino, apenas renasço, a mesma alma noutra matéria, o mesmo espírito indomável a admitir uma nova forma, a mesma frescura e sabedoria a percorrer o mundo inteiro aberta ao desconhecido, embalada pelo som harmónico do relógio da vida. Por vezes sorrio, amanso, relaxo, brilho e deixo que me encontrem, que me testem, que me usem. Outras expludo, torno-me uma fera feroz e ameaçadora, protejo-me fechando-me em mim mesma e semeio o pânico. Mas a minha essência, o meu ser, o meu coração, esse abriga-se na escuridão das profundezas desconhecidas e inexploradas, às quais nenhum Homem jamais chegará.
O brilho nos meus olhos é o mesmo que o da tua superfície, as ondas do meu cabelo são os raios de sol que te ilumina, e os meus lábios o túmulo sagrado dos teus segredos mortíferos e inatingíveis.
Amo-te, respeito-te, sinto-te, compreendo-te, perco-te e somos um. Neste momento, sei qual é o meu lugar, sei onde pertenço, sei porque me moldo e sei porque sou inesperada. Sou água. Sou corrente, onda, mar, túnel, sou gota, partícula, molécula, sou toda, completa, inteira, sou enigmática e mortífera, sou paixão e ódio. Sou mar com todas as forças que o meu corpo tem. Sou água!
Abri os olhos. Estava suada, ansiosa, ofegante. Olhei-te, admirei-te, senti-te. Despi-me. Rasguei de um puxão o vestido de linho branco, solto e leve que me cobria e, distante, atirei-o para longe. Sem medo corri para o mar, solta e deliberadamente, mergulhei espontânea em ti só porque sim, só mesmo porque te queria integrar, sentir teu esplendor. A temperatura gélida arrepiou-me o espírito mas deu-me vida e movimento, abri os olhos e acelerei mais e mais, desci mais fundo e fui mais longe ainda. Senti os meus pulmões lutarem desesperados por ar ao mesmo tempo que toda eu o renegava, sentia-os explodir de tensão no peito, mas não queria saber. Quando senti que era o fim, que ia desfalecer e encontrar a escuridão, meu pescoço rasgou-se de ambos os lados, como cortes feitos por garras afiadas, e de súbito estava aliviada e podia de novo respirar. Olhei-me, e entre meus dedos formaram-se membranas finas e translúcidas, o meu corpo assumira um tom azulado, os meus cabelos dançavam alegremente ao ritmo da corrente; os meus olhos já não ardiam, já não desfocavam, pelo contrário, a minha visão era agora mais límpida e precisa.
Estava livre, finalmente; solta, finalmente; viva, finalmente. Cheguei ao fundo e rocei com força na areia e nas algas verdes só para as poder sentir, e seu toque parecia seda macia e agradável. De um impulso subi o mais rápido que pude, e em instantes meu corpo harmonioso eclodiu da superfície e dei uma roda perfeita no ar, rodeada de uma chuva de grossas gotas cristalinas que admitiam efeitos de cores brilhantes com o reflexo do sol no céu limpo.
Quando de novo cai na água, vibrei. Não havia à minha volta tempo, espaço ou humanidade. Era eu e o mar, era eu o mar. Imortalidade e solidão eterna, alívio final para o sofrimento efémero.

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