(Em Setembro de 2009 abandonei um conto sem saber bem como nem porquê. "O Domador de Bonecas" estava a dar comigo em doida, mas hoje resolvi pegar nele. Espero que gostem, e desculpem aqueles que tiverem de voltar a Agosto e Setembro de há dois anos para relembrarem a Marta e o Paulo. Baci)
Estava um frio de morte naquele mês de Fevereiro. As tempestades constantes faziam estragos diversos nas habitações e nas ruas, e as pessoas pareciam deixar-se consumir, de certo modo tão congeladas quanto as janelas e os lagos.
Paulo fugira do centro de reabilitação com a certeza indomável de que tinha um trabalho para fazer. Se desde aquele dia, há dez anos atrás, via em todas as mulheres a mãe (tão bela, perfeita e apelativa quanto uma boneca de porcelana; tão frágil e fria como loiça- pena ser puta), o certo é que também tendera a associar a todos os homens os defeitos do pai. Aquele velho asqueroso e ordinário, tarado de terceira categoria, bêbado nojento...aquele porco que lhe matara a mãe com a desculpa de querer conhecer o filho, e que depois o deixara a apodrecer em orfanatos, deixara que lhe roubassem a infância e os sonhos, que lhe destruíssem a alma. Agora invadia-lhe os pensamentos: apoderava-se dele a ideia de lhe apertar o pescoço com um antebraço até o sentir tossir o último sopro de ar que lhe chegou aos pulmões, e com a outra mão lhe torcer os tomates sem dó nenhum.
Aos 17 anos Paulo não se parecia em nada com um adolescente. Alto não era, mas era entroncado, maciço, de ombros largos e possantes. A expressão fria e taciturna no rosto marcado por cicatrizes velhas e nodoas negras arroxeadas recentes fazia quem o olhasse desejar não o ter feito. Só Deus sabe aquilo por que aquele rapaz cuja boca nunca se abria já havia passado: e, no entanto, não era preciso mais do que um olhar àquele rosto para saber que corpo e alma estavam conspurcados por muito mais do que alguma vez alguma criança deva sequer imaginar, que um adulto ouse falar. Agora, gelado até aos ossos, de tez azulada e com uma nuvem de vapor a sair pela boca, Paulo seguia com firmeza.
O filho-da-puta aparecera no jornal. Aquele cretino tinha ganho a lotaria. Era agora oficialmente um alcoólatra assassino podre de rico. Pois bem, para seu azar a reportagem fizera dele um monte de merda abastado com paradeiro conhecido. Paulo ia caçar o lobo na toca. Paizinho.
Entrar no apartamento foi fácil. Esperar pela chegada do seu velho também. Mas nada do que lhe aconteceu o fez estar preparado para ver a vida desaparecer dos olhos de um ser humano e saber que a responsabilidade é dele. Vomitou e tremeu, os braços em volta dos joelhos, as mãos sujas de sangue, a faca (igualmente imunda) caída a seu lado no chão. Vomitou outra vez, quando se levantou e o olhou. Mas o que tem de ser tem de ser- e tem muita força.
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A corrente de ar fez bater a pesada porta do quarto. Ensonado, Luís Miguel estendeu a mão para o interruptor do candeeiro...uma da manhã. Mas como poderia a porta ter-se fechado com aquele estrondo? A não ser que...
Levantou-se de um salto e correu para o quarto da filha- vazio. A janela estava aberta, a porta do quarto também, a da rua destrancada: de Marta, nem sinal. Desesperado e com o coração a ameaçar saltar-lhe pela boca, Luís saiu para a rua e gritou a plenos pulmões o nome da filha, até a garganta doer e a voz faltar. Bateu à porta de vizinhos, acordou família e amigos para não encontrar vestígios. Às duas da manhã estava uma pequena comitiva à porta da esquadra mais próxima.
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