segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Anónima (como todos nós)

Mãos nos bolsos, capuz na cabeça, andar apressado. Vestida de negro mal se vê na rua pouco iluminada, passando como se fugisse aos candeeiros intermitentes. Mas não disfarça o ruído dos saltos no alcatrão. Entra numa porta discreta, sem número nem lote, sem fechadura. Bate e entra, assim, sem diálogos.
Despe o casaco sem levantar os olhos. Sobe os degraus indiferente ao ranger da madeira, aos gemidos e aos gritos meio sufocados que se ouvem por entre portas fechadas e veludos cor de sangue, aos baques surdos nas paredes, ao enebriante cheiro a álcool e a fumos.
Entra numa porta como as outras e fecha-a atrás de si. Tira o vestido justo e as meias de vidro, deixa que lhe tirem o resto. Na penumbra pouco vê, quase tão pouco quanto sente enquanto mecanicamente faz o que tem a fazer. Geme como as outras. Grita como as outras. Hora após hora cumpre os acordos pré-estabelecidos e troca o orgulho pela sobrevivência.
Prisioneira de todas as necessidades do corpo. Assassina de sonhos. Caçadora de desejos. Túmulo de segredos. É apenas mais uma. Talvez seja uma a mais. (Mas não somos todos, de uma maneira ou de outra?)

2 comentários:

Estrelinha* disse...

Como sempre, uma pequena grande maravilha, enches-me de coragem para seguir em frente... Bom Ano Novo

Estrelinha*

Graça Pires disse...

Um texto de grande sensibilidade. Para reflectir...
Um beijo, Rita e que o teu 2011 seja bom.