quarta-feira, 17 de março de 2010

Boca do Inferno


(Este texto foi escrito originalmente há uns bons 5 anitos, quando eu era dona de uma fantasia que hoje tento recuperar mais vezes do que aquelas que gosto de admitir. Hoje resolvi retocá-lo porque nunca o esqueci, e não resisto à tentação de o pôr aqui, adorava saber o que acham dele. Peço desculpa pelo tamanho, maior do que o habitual, sei que ocupa mais do vosso tempo. Enfim. Acreditam em lendas?)


Era uma vez um terrível feiticeiro cruel que habitava um magnífico e imponente castelo junto ao mar perto de Cascais, distante da restante população. O seu nome era Zafir, era feroz, sanguinário e invejoso, mas detentor de uma beleza invulgar e extraordinária. A fama de sua negra áurea e voraz comportamento corria pela gente, que dominada pelo medo sem hesitar lhe obedecia.
O distorcido coração do mago, contudo, implorava por companhia e ardia em doentia paixão. Num olhar apenas, uma mulher com corpo de deusa e rosto de anjo tinha-o deixado sedento de amor carnal. Não passou um dia sequer até que emitiu a ordem de captura da jovem, que sem saber desafiara as leis da estabilidade. Luzia vivia sozinha numa cabana de madeira, foi fácil arrastá-la à força para longe do seu lar.
Na presença de Zafir, Luzia vociferou. Nada sentia pelo mago e queria retomar a sua vida, mas a sua força de nada serviu. Zafir queria-a só para si. E ia afastá-la de tudo e de todos, se preciso, para fazer dela sua mulher.
A ruiva foi trancada na torre mais alta do castelo, como rezam as lendas que se deve fazer. Estava condenada à solidão até que se arrependesse de ter recusado o amor do nobre feiticeiro. Era guardada pelo mais forte cavaleiro da ordem de Zafir, Tomás, que passava dias e noites ao frio, protegendo a donzela que nem conhecia do mal exterior que não a esperava em nenhum outro lugar que não na cabeça do poderoso mago. A companhia dos dois era o mar, revolto e indomável, que ambos observavam das janelas, sedentos de partilhar um pouco daquela liberdade, invejando em silêncio o poder e a magnitude daquele mundo azul.
Zafir não esqueceu a ruiva com olhos de gato que o tinha recusado, mas o seu orgulho impediu-o de a voltar a ver, e os meses passaram. Com a falta de inimigos que ousassem enfrentá-lo, Tomás não era preciso na frente do seu pequeno exército, e o feiticeiro esqueceu que, apesar de seu discípulo, o homem era de carne e osso. E a carne falou mais alto. Tomás ouvira falar dos atributos divinos de Luzia. Sabia que todos os que lhe tinham pousado os olhos em cima haviam ficado como que hipnotizados, sem de nada mais falarem. E estava preso a poucos metros daquela que prometia ser a rainha das mulheres, sem sequer conhecer os contornos do seu rosto.
Num ímpeto, sem se atrever a questionar as consequências da ideia que o invadira, o cavaleiro pegou na chave de ouro que abria a porta por onde atirava as refeições da prisioneira e aventurou-se a subir a imensidão de escadas, só parando no topo para recuperar o fôlego.
E de resto todos sabemos o que acontece quando duas almas solitárias que partilham muito mais que um segredo e desejam a mesma coisa se cruzam. Luzia e Tomás apaixonaram-se. Aos poucos nasceu das cinzas e do desespero uma relação forte.
Mais confiantes por se terem um ao outro, os enamorados depressa começaram a pensar em fugir. O oceano era testemunha do sofrimento pelo qual haviam passado, e de alguma forma os iria proteger nesta missão impossível. De qualquer maneira, não poderiam passar a eternidade naquele lugar.
Mas o traiçoeiro Zafir sabia da história dos dois desde o inicio, e como tal estava também a par do plano de fuga. O mago sentira a traição, e roído pelo ciúme e pela raiva esperava apenas por decidir o que fazer com aqueles que o esfaqueavam pelas costas. A sua mente em nada mais pensava que em como conseguir dar-lhes o que mereciam e ensinar a todos que não se podia enganar Zafir e sair impune.
Montados no belo cavalo branco de Tomás, os apaixonados percorriam os rochedos junto ao mar o mais rápido que podiam, enquanto que o vento batia forte nas suas caras, atirando os seus cabelos para trás e dificultando a vista. Nesse momento o mago traído cria do nada uma tempestade imensa recorrendo a todas as suas forças, e o assustador fenómeno abriu os rochedos que os cavaleiros percorriam como uma terrível boca de uma fera esfomeada, engolindo-os de um só trago, acabando com a sua vida e os seus sonhos, bem como com o seu forte amor. Foram engolidos pelas águas que tanto admiravam, e desapareceram para todo o sempre.
E desde aí o buraco está aberto. Hoje o seu nome é Boca do Inferno, e não há quem o visite que não sinta arrepios ao ouvir o terrível rugido do mar embatendo nas rochas. Há também quem jure ouvir o relinchar de um cavalo assustado.


(Quanto ao mago, diz a lenda que as forças que usou para invocar tamanha tempestade consumiram todo o seu ser, e que perdeu a vida no exacto momento em que as rochas se abriram e engoliram os amados. O seu castelo ruiu engolindo tudo e todos os que lá se encontravam. Com o tempo nada restou.)