sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Sob a lua cheia


Assustado corri pelo bosque escuro, cuja densa vegetação me impedia de distinguir bem as formas. Eu ofegava, e desejava com todas as minhas forças que te tivesse deixado para trás, que a minha fuga apressada te tivesse despistado na noite, e que agora estivesses a salvo.
Finalmente, perdido no bosque, encontrei o meu local sagrado, o meu oásis perdido: um pequeno lago de cor azul esverdeada na qual a lua se espelhava, inteira e esplendorosa. Apesar de tudo estava bastante calmo, e entreguei-me seguro á minha sorte já que não havia como lhe escapar. Olhei a lua, cheia, bela e poderosa. Sentei-me, confiante, na pedra fria e escorregadia que era o meu abrigo de pensamentos e olhei para o relógio. Faltavam dez segundos para a meia-noite, o tempo urgia. Fechei os olhos e abstraí-me.
Não tardou a que sentisse a força animal e invasora a apoderar-se de mim. Como odiava o seu odor, a sua essência, o seu apetite carnívoro e incontrolável. Mas era tarde demais, e o Lobo estava de volta.
Senti a dor aguda de meu corpo mudar. Garras rasgavam os meus dedos e surgiam afiadas nas minhas mãos e nos meus pés, que eram agora patas fortes, firmes e peludas. A roupa rasgou-se aos poucos conforme o meu corpo se transformava e a dor atordoava-me, ao mesmo tempo que para tentar aliviá-la gritei para a lua. De repente deixei de gritar, e o meu grito transformou-se naturalmente num urro agudo e profundo, alto e vibrante. Já sentia as presas aguçadas na minha boca rasgada, o olfacto apuradíssimo, a visão penetrante e a sede de sangue. A dor da transformação mantinha-me num transe etéreo e quando senti que não aguentava mais, que estava fraco e atingira o limite, então tudo parou num instante sem deixar rasto.
Sentei-me de novo na mesma rocha onde meu corpo humano estivera, onde minhas roupas em farrapos ainda jaziam. Olhei o meu reflexo no lago, iluminado pela lua. Vi, com tristeza, meus olhos cintilantes, minhas orelhas pontiagudas, meu focinho imponente e minha pelagem farta e limpa. Todo o meu ser era mágico, majestoso e forte, e no entanto não o queria.
Ouvi, distante, um ruído de movimento no bosque. Escondi-me nas sombras para que pudesse atacar a minha presa de surpresa e saciar a minha fome, até que o aroma de fruto e flores invadiu minhas narinas e me desconcentrou por completo. Perdi a fome e o instinto predador, fui invadido pelo medo. Não podia ser verdade.
De repente surgiste, como incrédulo previra. O teu belo vestido negro estava rasgado e sujo da custosa travessia do bosque, e vi na tua linda face a expressão nítida de angústia por me teres perdido. Ajoelhaste-te junto ao lago, na mesma pedra que eu mesmo ocupara há segundos, e agarrada a um farrapo de minha camisa suada que ainda lá jazia, choraste. Cada uma de tuas lágrimas quentes e sentidas queimava a minha alma como ácido sulfúrico, enquanto me controlava, angustiado, para não me aproximar.
Foi só quando vi o brilho metálico de uma faca em tua mão e adivinhei o teu pensamento que cedi instantaneamente á vontade de me revelar e impedir-te de cometer aquela loucura.
Corri até ti e ao pores os olhos em mim não fugiste. Pelo contrário, olhaste-me nos olhos com doçura e soube de imediato que não precisava de te explicar, que já sabias de tudo, talvez até há muito tempo. Abraçaste-me com força e não resisti ao desejo de te morder e tornar-te como eu.
A dentada foi pequena, muito ao de leve, apenas o suficiente para que o meu veneno penetrasse no teu sangue. Não gritaste nem reclamaste, nem tão pouco te mexeste. De facto, pareceu-me até que não sofreste com a transformação que te alterou por completo e te transformou, sem dúvida, na mais linda loba que já vi.
Lado a lado, unidos pelo amor e pelo sangue, uivamos alto para a lua e corremos livres junto ao lago. A madrugada passou rápida e fugaz, como nunca antes fora, ou pelo menos não me parecera. Até que no firmamento surgiu o primeiro raio de sol, e, lado a lado, sentimos a maldição dissipar de nosso corpo e alma como nevoeiro. O sol surgiu, laranja, e estávamos juntos á beira de lago, de mãos dadas, nus e sós, mas felizes.
Como que demonstrando que me perdoavas a traição que fiz ao morder-te e amaldiçoar a tua vida eternamente, como a minha já estava, beijaste-me calorosa e profundamente, senti o calor do teu corpo junto do meu, tua pele macia deslizava em minhas mãos.
“Amo-te”, foi a única palavra que disseste com ternura, a mesma que, apaixonado, repeti olhando-te nos olhos e perdendo-me neles, como num imenso mar profundo e desconhecido. Depois, mais livres e soltos que nunca, tomámos banho. A vida eterna começara, e a partir daquele momento estávamos os dois juntos, sós, para sempre.

3 comentários:

Anónimo disse...

Acho que não ha palavras para descrever este texto...

Fiquei completamente rendido!! Obrigado por partilhares!!

Anónimo disse...

Pronto...agora já não me podes chatear mais por causa do blog (que coisa)...não fofa...está óptimo...gostei muito. Beijinhos grandes da prima

Anónimo disse...

O primeiro comentário, finalmente consegui. Não preciso de ser sincero, sabes que se é a este texto não é porque é o melhor, mas sim porque foi o primeiro que li. Para mim o teu melhor é transitório, pois a evolução é constante e nunca te ficas por aqui. E quem tem 20 a LEP e vive a vida ao máximo resguardando-se para o momento do click e o amor eterno e transcendente, dá nisto, inspirações profundas revistas não na tua vida mas na ideia idílica que tens da tua vida, do que um dia será, do que um dia quererás ser, arrumada na desarrumação que, turbilhão de ideias e inquietação que é tua cabeça. Mas contudo, há que pôr os pontos nos i's e tenho a dizer-te: que títulos são estes? Não seria muito mais lógico, por exemplo este texto ser intitulado 'Morde-mos'?