Assustado corri pelo bosque escuro, cuja densa vegetação me impedia de distinguir bem as formas. Eu ofegava, e desejava com todas as minhas forças que te tivesse deixado para trás, que a minha fuga apressada te tivesse despistado na noite, e que agora estivesses a salvo.
Finalmente, perdido no bosque, encontrei o meu local sagrado, o meu oásis perdido: um pequeno lago de cor azul esverdeada na qual a lua se espelhava, inteira e esplendorosa. Apesar de tudo estava bastante calmo, e entreguei-me seguro á minha sorte já que não havia como lhe escapar. Olhei a lua, cheia, bela e poderosa. Sentei-me, confiante, na pedra fria e escorregadia que era o meu abrigo de pensamentos e olhei para o relógio. Faltavam dez segundos para a meia-noite, o tempo urgia. Fechei os olhos e abstraí-me.
Não tardou a que sentisse a força animal e invasora a apoderar-se de mim. Como odiava o seu odor, a sua essência, o seu apetite carnívoro e incontrolável. Mas era tarde demais, e o Lobo estava de volta.
Senti a dor aguda de meu corpo mudar. Garras rasgavam os meus dedos e surgiam afiadas nas minhas mãos e nos meus pés, que eram agora patas fortes, firmes e peludas. A roupa rasgou-se aos poucos conforme o meu corpo se transformava e a dor atordoava-me, ao mesmo tempo que para tentar aliviá-la gritei para a lua. De repente deixei de gritar, e o meu grito transformou-se naturalmente num urro agudo e profundo, alto e vibrante. Já sentia as presas aguçadas na minha boca rasgada, o olfacto apuradíssimo, a visão penetrante e a sede de sangue. A dor da transformação mantinha-me num transe etéreo e quando senti que não aguentava mais, que estava fraco e atingira o limite, então tudo parou num instante sem deixar rasto.
Sentei-me de novo na mesma rocha onde meu corpo humano estivera, onde minhas roupas em farrapos ainda jaziam. Olhei o meu reflexo no lago, iluminado pela lua. Vi, com tristeza, meus olhos cintilantes, minhas orelhas pontiagudas, meu focinho imponente e minha pelagem farta e limpa. Todo o meu ser era mágico, majestoso e forte, e no entanto não o queria.
Ouvi, distante, um ruído de movimento no bosque. Escondi-me nas sombras para que pudesse atacar a minha presa de surpresa e saciar a minha fome, até que o aroma de fruto e flores invadiu minhas narinas e me desconcentrou por completo. Perdi a fome e o instinto predador, fui invadido pelo medo. Não podia ser verdade.
De repente surgiste, como incrédulo previra. O teu belo vestido negro estava rasgado e sujo da custosa travessia do bosque, e vi na tua linda face a expressão nítida de angústia por me teres perdido. Ajoelhaste-te junto ao lago, na mesma pedra que eu mesmo ocupara há segundos, e agarrada a um farrapo de minha camisa suada que ainda lá jazia, choraste. Cada uma de tuas lágrimas quentes e sentidas queimava a minha alma como ácido sulfúrico, enquanto me controlava, angustiado, para não me aproximar.
Foi só quando vi o brilho metálico de uma faca em tua mão e adivinhei o teu pensamento que cedi instantaneamente á vontade de me revelar e impedir-te de cometer aquela loucura.
Corri até ti e ao pores os olhos em mim não fugiste. Pelo contrário, olhaste-me nos olhos com doçura e soube de imediato que não precisava de te explicar, que já sabias de tudo, talvez até há muito tempo. Abraçaste-me com força e não resisti ao desejo de te morder e tornar-te como eu.
A dentada foi pequena, muito ao de leve, apenas o suficiente para que o meu veneno penetrasse no teu sangue. Não gritaste nem reclamaste, nem tão pouco te mexeste. De facto, pareceu-me até que não sofreste com a transformação que te alterou por completo e te transformou, sem dúvida, na mais linda loba que já vi.
Lado a lado, unidos pelo amor e pelo sangue, uivamos alto para a lua e corremos livres junto ao lago. A madrugada passou rápida e fugaz, como nunca antes fora, ou pelo menos não me parecera. Até que no firmamento surgiu o primeiro raio de sol, e, lado a lado, sentimos a maldição dissipar de nosso corpo e alma como nevoeiro. O sol surgiu, laranja, e estávamos juntos á beira de lago, de mãos dadas, nus e sós, mas felizes.
Como que demonstrando que me perdoavas a traição que fiz ao morder-te e amaldiçoar a tua vida eternamente, como a minha já estava, beijaste-me calorosa e profundamente, senti o calor do teu corpo junto do meu, tua pele macia deslizava em minhas mãos.
“Amo-te”, foi a única palavra que disseste com ternura, a mesma que, apaixonado, repeti olhando-te nos olhos e perdendo-me neles, como num imenso mar profundo e desconhecido. Depois, mais livres e soltos que nunca, tomámos banho. A vida eterna começara, e a partir daquele momento estávamos os dois juntos, sós, para sempre.