sexta-feira, 23 de novembro de 2007

De profundis amamus


Ultimamente ando sem inspiração. Por alguma razão, que me passa totalmente ao lado, quando me sento para escrever e pego no lápis as ideias fogem. Peço, por isso, desculpa a todos os que gostam das minhas palavras.

No entanto, gostaria de fazer uma homenagem a um grande senhor, Mário Cesariny, apresentado um poema que me derrete completamente.

Até sempre, Mário!



De profundis amamus


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Desespero


As horas passam lentas por mim. Uma, duas, três… vejo os ponteiros do relógio girarem lentos numa tontura eterna e sincronizada que de dança tem apenas o compasso, cujo ritmo é igual ao do meu coração.
Paro. Nada me parece suficientemente produtivo e útil para aqueles segundos que passam e que me fogem entre os dedos sem que tenha oportunidade de os agarrar. Ler custa, as letras são pequenas demais, atropelam-se, enrolam-se, entorpecem os meus sentidos. Ouvir cansa, enche, aborrece e enerva, com todos aqueles sons misturados num grito terrivelmente desafinado que se assemelha a um conjunto de objectos cada um a gritar para seu lado, acompanhados por uma voz que parece suplicar por silêncio. Observar é pouco, conheço cada forma, cada cor, cada sombra, nada é novo, apenas o meu tédio perante tudo o que surge. Volto a olhar o relógio… mais segundos que vão e não voltam, mais minutos que passam por mim e me gritam adeus, como se se estivessem a despedir de uma desgraçada que jamais terá sucesso numa vida de oportunidades.
Deito-me e fecho os olhos, sinto que me falta alguma coisa e a garganta aperta. Abro os olhos e volto a sentar-me, não há tontura, apenas a ilusão por breves momentos que tudo é como de costume… até que a minha alma desesperada pede ansiosa algo mais.
No fundo finjo. Sei o que quero, sei o que sinto, sei de onde vem o nó horrível que me aperta a garganta. Apenas o evito, o renego, apenas me dou ao luxo de lhe virar as costas e tentar ser mais forte, apesar de saber que é totalmente impossível, que ele me apanhará sem problemas, mais tarde ou mais cedo. Posso fugir, mas não me posso esconder de mim mesma, do meu maior pesadelo. A tua voz ressoa nos meus ossos como um tilintar de sino de igreja, cerro os olhos com força e vejo os teus a mirarem-me do escuro, afasto-os com mais força ainda e deparo-me inevitavelmente com o teu sorriso. Não me persigas, desaparece. O teu mundo e o meu simplesmente não encaixam. Será que o meu alguma vez virá a encaixar onde quer que seja?
Saio porque não aguento mais esta sina. Corro veloz nas ruas que mal vejo passar por mim, grito ao vazio e tapo as orelhas porque não quero resposta. Caio, rasgo a roupa que não sei porque tenho vestida, levanto-me e continuo a correr para o nada, por nada. As lágrimas nublam a minha visão e aquecem-me, perco o fôlego e mal posso respirar, deixo-me derrubar desamparada não sei bem onde e fico lá, deixo que passem todos os meus autocarros perdidos por natureza própria, como alguém bem mas sábio que eu teve a sensatez de dizer.
Como pode o nada doer tanto, mas que vazio é este que me enche de tristeza, de dor, de mágoa, de aflição? E que coração o meu, que alma, que sina, que destino, que força é capaz de me guiar sempre na direcção errada, qual é o principio que me indica sempre o caminho que eu não devo seguir, porque é que acabo agarrada sempre aquilo que sei que perderei, aquilo que me fere, que me rasga por dentro com unhas e dentes e destrói o que lá estiver? Grito mais e mais, sem forças desespero, vem e leva-me, força, mata-me, arranca-me a essência e fica feliz, explode-me num rio de sangue espesso que corra quente na calçada imunda que os teus passos percorrem diariamente, mas por favor tira-me desta agonia…

domingo, 4 de novembro de 2007

Hoje


Hoje, aqui sentada enquanto distraidamente roo a ponta da caneta e olho para o papel pensando no que escrever, decido que o ideal é deixar-me levar ao sabor da corrente de palavras que vão surgindo lentamente numa mente quase em branco, deixar que a marca de tinta incerta decida o que fazer.
Hoje não sinto de todo. O vazio preenche-me sem que a alma me doa, simplesmente estou aqui, não estou bem, também não estou mal, respiro e tenho os olhos abertos, o coração bate e os segundos atropelam-se na sua dança metódica e bem ensaiada. Será que vivo agora?
Hoje não sou peça activa no jogo do mundo em que todos entramos, hoje sou observadora e permaneço no meu baloiço de madeira, vendo, analisando, perscrutando cada centímetro de espaço e cada gesto efectuado. Hoje assimilo informações, guardo mensagens, hoje aprendo e evoluo no silêncio e na inércia. Não estou feliz, mas também não quero estar. Estou sozinha, mas não quero companhia. Este buraco é tudo o que preciso, é tudo o que tenho e tudo o que me faz falta. Hoje, tudo o que desejo é ser indiferente, é passar ao lado, é saber que o mundo está demasiado embrenhado na sua vidinha monótona para sequer reparar na existência de mais uma máquina de sangue quente e raciocínio lento que hoje procura não ser parte dele.
Hoje, sou eu não sendo nada. Hoje, aprendo sem viver. Hoje não quero nada, mas sei que não vou por aí.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Sob a lua cheia


Assustado corri pelo bosque escuro, cuja densa vegetação me impedia de distinguir bem as formas. Eu ofegava, e desejava com todas as minhas forças que te tivesse deixado para trás, que a minha fuga apressada te tivesse despistado na noite, e que agora estivesses a salvo.
Finalmente, perdido no bosque, encontrei o meu local sagrado, o meu oásis perdido: um pequeno lago de cor azul esverdeada na qual a lua se espelhava, inteira e esplendorosa. Apesar de tudo estava bastante calmo, e entreguei-me seguro á minha sorte já que não havia como lhe escapar. Olhei a lua, cheia, bela e poderosa. Sentei-me, confiante, na pedra fria e escorregadia que era o meu abrigo de pensamentos e olhei para o relógio. Faltavam dez segundos para a meia-noite, o tempo urgia. Fechei os olhos e abstraí-me.
Não tardou a que sentisse a força animal e invasora a apoderar-se de mim. Como odiava o seu odor, a sua essência, o seu apetite carnívoro e incontrolável. Mas era tarde demais, e o Lobo estava de volta.
Senti a dor aguda de meu corpo mudar. Garras rasgavam os meus dedos e surgiam afiadas nas minhas mãos e nos meus pés, que eram agora patas fortes, firmes e peludas. A roupa rasgou-se aos poucos conforme o meu corpo se transformava e a dor atordoava-me, ao mesmo tempo que para tentar aliviá-la gritei para a lua. De repente deixei de gritar, e o meu grito transformou-se naturalmente num urro agudo e profundo, alto e vibrante. Já sentia as presas aguçadas na minha boca rasgada, o olfacto apuradíssimo, a visão penetrante e a sede de sangue. A dor da transformação mantinha-me num transe etéreo e quando senti que não aguentava mais, que estava fraco e atingira o limite, então tudo parou num instante sem deixar rasto.
Sentei-me de novo na mesma rocha onde meu corpo humano estivera, onde minhas roupas em farrapos ainda jaziam. Olhei o meu reflexo no lago, iluminado pela lua. Vi, com tristeza, meus olhos cintilantes, minhas orelhas pontiagudas, meu focinho imponente e minha pelagem farta e limpa. Todo o meu ser era mágico, majestoso e forte, e no entanto não o queria.
Ouvi, distante, um ruído de movimento no bosque. Escondi-me nas sombras para que pudesse atacar a minha presa de surpresa e saciar a minha fome, até que o aroma de fruto e flores invadiu minhas narinas e me desconcentrou por completo. Perdi a fome e o instinto predador, fui invadido pelo medo. Não podia ser verdade.
De repente surgiste, como incrédulo previra. O teu belo vestido negro estava rasgado e sujo da custosa travessia do bosque, e vi na tua linda face a expressão nítida de angústia por me teres perdido. Ajoelhaste-te junto ao lago, na mesma pedra que eu mesmo ocupara há segundos, e agarrada a um farrapo de minha camisa suada que ainda lá jazia, choraste. Cada uma de tuas lágrimas quentes e sentidas queimava a minha alma como ácido sulfúrico, enquanto me controlava, angustiado, para não me aproximar.
Foi só quando vi o brilho metálico de uma faca em tua mão e adivinhei o teu pensamento que cedi instantaneamente á vontade de me revelar e impedir-te de cometer aquela loucura.
Corri até ti e ao pores os olhos em mim não fugiste. Pelo contrário, olhaste-me nos olhos com doçura e soube de imediato que não precisava de te explicar, que já sabias de tudo, talvez até há muito tempo. Abraçaste-me com força e não resisti ao desejo de te morder e tornar-te como eu.
A dentada foi pequena, muito ao de leve, apenas o suficiente para que o meu veneno penetrasse no teu sangue. Não gritaste nem reclamaste, nem tão pouco te mexeste. De facto, pareceu-me até que não sofreste com a transformação que te alterou por completo e te transformou, sem dúvida, na mais linda loba que já vi.
Lado a lado, unidos pelo amor e pelo sangue, uivamos alto para a lua e corremos livres junto ao lago. A madrugada passou rápida e fugaz, como nunca antes fora, ou pelo menos não me parecera. Até que no firmamento surgiu o primeiro raio de sol, e, lado a lado, sentimos a maldição dissipar de nosso corpo e alma como nevoeiro. O sol surgiu, laranja, e estávamos juntos á beira de lago, de mãos dadas, nus e sós, mas felizes.
Como que demonstrando que me perdoavas a traição que fiz ao morder-te e amaldiçoar a tua vida eternamente, como a minha já estava, beijaste-me calorosa e profundamente, senti o calor do teu corpo junto do meu, tua pele macia deslizava em minhas mãos.
“Amo-te”, foi a única palavra que disseste com ternura, a mesma que, apaixonado, repeti olhando-te nos olhos e perdendo-me neles, como num imenso mar profundo e desconhecido. Depois, mais livres e soltos que nunca, tomámos banho. A vida eterna começara, e a partir daquele momento estávamos os dois juntos, sós, para sempre.