-Pst, Devine, apaga esse fogo antes que te ponha na rua...
Sorri. O roçar da barba dele no meu pescoço e a doçura da voz da qual estive privada durante anos derreteram o que restava para me sentir de novo parte daquele lugar.
-E desde quando se cumpre a lei nesta espelunca?
-Muito mudou, minha querida...
Se era verdade, a mim não parecia. O palco estava igual, as mesas eram as mesmas, o balcão continuava sujo e rachado e quase podia jurar que as cortinas ainda tinham aquela mancha que ambos sabíamos porque lá estava.
-O Jorge já não toca saxofone como ninguém?-sorri.
-Está para nascer quem o faça melhor,- sorrindo-me de volta, passou as costas da mão pelo meu rosto- da mesma maneira que ainda não achámos quem cante como tu...
Saí das sombras e fiz sem pressas o percurso que por anos a fio foi a minha rotina. Toquei as cadeiras como que para sentir cada momento esquecido e enquanto subia as escadas do palco ouvi os aplausos, os assobios, todo o clamor.
-Acho que já não seria capaz...
-Tenta. Só estou eu, aqui.Mata saudades.
Peguei no microfone. Desligado. Melhor, assim seria menos audível a loucura que estava prestes a cometer. Despi o casaco e deixei-o caído no chão. Soltei o cabelo. Fechei os olhos e vi a minha vida como uma cassete de vídeo das antigas, a rebobinar. O casamento falhado. O emprego que não me preenchia. A perda dos amigos verdadeiros. Aquela sala, todas as noites em que sem preconceitos nem pudor dei vida à minha alma. Era feliz. Senti o calor do holofote e soube que estava na hora. A voz, meia presa ao início, depressa tomou posse do palco inteiro.
***
A voz dela soava feroz e magnifica, majestosa e fatal, como um felino selvagem no seu habitat. E ele ouvia-a com o prazer de sempre, a luxuria invadindo todo o seu corpo, sabendo que nem o passar dos anos mataria o que sentia por aquela mulher tão distante e fechada. Sentado, olhando para ela, desejou ter vivido doutra maneira, ter tido mais coragem, não ter deixado a felicidade escapar por entre os dedos. Porque teria Devine voltado?
***
O coração batia-me a galope quando finalmente libertei tudo o que acumulei no tempo que estive longe dali. Estava afogueada, com calor, mas sentia-me mais leve. Diogo olhava-me do meio da sala, sentado na cadeira, enternecido. Os seus olhos brilhavam. Apercebi-me das saudades que tinha dele, de como mais ninguém me fazia corar e desviar os olhos, do quanto ficava nervosa quando estávamos sós.
-Não te parti os copos todos?
-Falando neles, aceitas uma bebida?
-Claro. Serves-me?
-Não aqui. Está uma noite linda, vamos aproveitar.
-Mas, e o teu emprego? Duas horas e isto vai estar a abarrotar.
-Há anos que não vejo esta sala cheia,- havia uma verdade dolorosa nos olhos dele enquanto tirava do bolso o telemóvel e o desligava- e de qualquer maneira, eles safam-se sem mim. Hoje nada me vai tirar de perto da mulher que, quando desaparece, leva a minha alma.
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