sábado, 29 de agosto de 2009

Caneta de sangue

Não sei quanto tempo estive parada, a definhar por dentro, à espera que algo me despertasse, me alentasse a fúria de escrever. Quantos mais dias, meses, passaram, mais carcomida me senti, miserável e oca. Até que não aguentei mais o vazio.
Li. Li durante horas a fio, páginas atrás de páginas, todos os dias, até a vista me pesar e o sono levar a melhor. Li com a sofreguidão fugaz de quem passou demasiado tempo sem se alimentar. Senti cada alma inscrita nas folhas ser transmitida para dentro de mim, senti finalmente voltar o latejar de vida nas minhas veias. Ri alto sem motivo, enquanto a minha essência se misturava com aquelas que com o seu sangue escreveram as suas histórias. A cada frase sentia a minha força aumentar, o meu conhecimento crescer. Li com a sede vampírica de quem precisa, e depois com o prazer egoísta de quem consome.
Deitada na cama, exausta e cheia, vi o céu ficar coberto de nuvens espessas tingidas de sangue. Vi o arrastar lento e pesado das pessoas nesta cidade dos malditos, como em qualquer outra. E então decidi escrever.
Quem faz da escrita um ofício com o propósito de ser tornado público sabe que vende a alma por dinheiro que é sempre pouco, ou por vaidade que é sempre demais. Mas a tentação é grande e a carne é fraca. Entreguei-me às folhas em branco com fúria, sabendo que nelas ficaria aprisionada uma parte de mim que, embora incompleta, era real. A tinta permanente escrevi aquele que sabia ser um legado de sangue, o preço de querer imortalizar a alma ainda em vida, aos pedaços por entre papel e encadernações.


Quando acabei estava tonta, mas sentia-me plena. Alma por alma, dente por dente. A maldição de ler estava paga. Aquele punhado de folhas continha, imaculado, o meu pescoço pronto a ser mordido. Deixei-me cair. O pior havia passado.







«Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue fica a morar em Mim e Eu nele» Evangelho segundo S. João 6,51-58

1 comentário:

Gabriela disse...

Tinha tantas saudades das tuas palavras que fiquei realmente feliz quando vi o teu e-mail.

E tenho saudades tuas!

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